A Fenomenologia como Portal para a Realidade Subjetiva

As palavras não possuem mera função de nomear tudo o que é visto ou ouvido, mas de destacar os padrões recorrentes em nossa experiência.

Franz Brentano: mestre de Husserl. Foto cortesia do Arquivo Brentano da Universidade de Graz
Franz Brentano: mestre de Husserl. Foto cortesia do Arquivo Brentano da Universidade de Graz

Introdução

A Fenomenologia, derivada dos termos gregos "phainesthai" (aquilo que se apresenta ou se manifesta) e "logos" (estudo, explicação), constitui uma abordagem filosófica que exalta a preponderância dos fenômenos da consciência e postula sua intrínseca necessidade de ser investigada em si mesma. Nessa perspectiva, todo o conhecimento que se almeja obter do mundo reduz-se a esses fenômenos, os quais são entidades ideais que subsistem na mente e são representados por meio de vocábulos que exprimem sua essência e significação. A Fenomenologia intenta apreender esses objetos em sua absoluta plenitude por intermédio da intuição pura, com o desígnio de desvelar as estruturas essenciais dos atos da consciência (noesis) e os correlatos objetos objetivos aos quais eles se referem (noema).

Edmund Husserl, eminente filósofo, matemático e lógico, é erigido como o fundador dessa corrente de investigação filosófica. Husserl edificou os fundamentos conceituais e os métodos que seriam amplamente adotados pelos filósofos dessa tradição. Sob a influência de seu mestre Franz Brentano, o pensador insurgiu-se contra as correntes historicista e psicologistas, almejando reconstituir a filosofia enquanto uma pesquisa subjetiva e rigorosa, com base no estudo dos fenômenos tal como se manifestam à mente, buscando desvelar as verdades da razão. Suas investigações lógicas irradiaram influência até mesmo sobre filósofos e matemáticos da corrente empirismo lógico, que constituíam a corrente oposta mais vigorosa. A Fenomenologia vicejou como uma reação à tendência de banir a metafísica, que grassava entre muitos filósofos e cientistas do século XIX.

Husserl exerceu o magistério em renomadas instituições, tais como Gotinga e Friburgo em Brisgóvia, e foi autor de obras como "Ficar Sem Estudar" (1906). Em contraposição às correntes intelectuais de sua época, ele empreendeu esforços para estabelecer os fundamentos e as condições de uma filosofia rigorosa. No entanto, emerge uma indagação: como conferir rigor ao raciocínio filosófico em relação a realidades tão mutáveis quanto as do mundo real?

A êxito do método científico repousa na formulação de verdades provisórias que se revelam úteis, permanecendo válidas até que novos fatos revelem uma realidade distinta. Para evitar que a verdade filosófica também se converta em algo provisório, Husserl propõe que esta se refira às coisas tal como se manifestam na experiência consciente, examinadas em suas essências e autênticas significações, isentas de teorias e pressupostos, despidas dos acidentes próprios do mundo real e empírico, objeto de estudo da ciência. Almejando restaurar a lógica pura e conferir rigor à filosofia, Husserl empreende uma discussão sobre o princípio da contradição na Lógica.

No primeiro volume de suas "Investigações Lógicas" (1900-1901), intitulado Prolegômenos, Husserl apresenta sua crítica ao psicologismo. Segundo os psicologistas, o princípio da contradição consiste na impossibilidade de um sistema associativo estar ao mesmo tempo associando e dissociando. Isso implicaria que o ser humano não pode pensar que A é A e, simultaneamente, pensar que A é não-A. Contudo, Husserl contesta essa visão e afirma que o sentido do princípio da contradição reside no fato de que, se A é A, não pode ser não-A. Para ele, o princípio da contradição não se refere à possibilidade do pensamento, mas sim à verdade do que é pensado. Ele insiste que o princípio da contradição, assim como os demais princípios lógicos, possui validade objetiva, ou seja, refere-se a algo como verdadeiro ou falso, independentemente do modo como a mente pensa ou de como o pensamento se processa.

Em seu artigo "Filosofia como Ciência Rigorosa" (1910-1911), Husserl critica tanto o naturalismo quanto o historicismo. Ele argumenta que o historicismo implica relativismo e, por essa razão, é incapaz de alcançar o rigor necessário para ser considerado uma verdadeira ciência.

Diante desse contexto, o objetivo deste artigo é explorar a Fenomenologia como uma abertura para a compreensão da realidade subjetiva. Ao examinarmos as estruturas essenciais da consciência e os objetos ideais que existem na mente, a Fenomenologia busca oferecer uma abordagem rigorosa e subjetiva para a compreensão do mundo. Seguindo os passos de Edmund Husserl, o pioneiro desse método de investigação filosófica, seremos conduzidos a uma análise profunda dos fenômenos da consciência e suas relações com a verdade, a validade e a essência.

Este estudo nos permitirá compreender a importância da Fenomenologia como uma alternativa filosófica que vai além das limitações impostas pelo historicismo e pelo psicologismo. Ao analisarmos as experiências subjetivas e buscarmos a intuição pura, a Fenomenologia nos convida a explorar o mundo interior da consciência e desvendar as estruturas essenciais que fundamentam nossas percepções, pensamentos e conhecimentos.

Assim, este artigo tem como propósito apresentar uma visão aprofundada da Fenomenologia, destacando sua relevância e potencial para a investigação filosófica contemporânea. Ao analisar as obras de Edmund Husserl e explorar os fundamentos da Fenomenologia, estaremos preparados para embarcar em um mundo de reflexões e descobertas que nos conduzirão a uma compreensão mais profunda da realidade subjetiva e de nós mesmos como seres conscientes. Ao compreendermos a importância dos fenômenos da consciência e a busca pelas estruturas essenciais subjacentes, poderemos desenvolver uma abordagem mais autêntica e fundamentada em nossa relação com o mundo.

Portanto, ao finalizar esta introdução, estamos prontos para embarcar em uma jornada filosófica que nos levará a desvendar as nuances da Fenomenologia como um portal para a realidade subjetiva. Por meio de uma análise crítica, reflexiva e embasada nas contribuições de Husserl e outros pensadores fenomenológicos, buscaremos expandir nosso entendimento sobre a natureza da consciência, da percepção e do conhecimento. Ao fazê-lo, esperamos contribuir para um diálogo enriquecedor e uma compreensão mais profunda da experiência humana e de seu significado na busca pela verdade. Através da Fenomenologia, poderemos descobrir novas perspectivas e desafiar concepções estabelecidas, abrindo caminho para um maior entendimento de nós mesmos e do mundo ao nosso redor.

A prática da redução fenomenológica

A fenomenologia, como ciência que se propõe a estudar a complexa dinâmica da consciência e os objetos que a permeiam, encontra na redução fenomenológica, também conhecida como epoche, um processo singular. Tal processo consiste em transmutar tudo aquilo que se insinua aos sentidos em uma esfera experiencial consciente, constituindo um fenômeno que se desvela como a plena consciência de algo. Ondequer que encontremos coisas, imagens, fantasias, atos, relações, pensamentos, eventos, memórias, sentimentos e demais matizes, aí encontraremos também as tessituras de nossas vivências conscientes.

Husserl, com sua perspicácia, propugnou que, no afã de investigarmos nossas vivências, os estados de consciência que nos assolam e os objetos ideais que emergem nesse horizonte de consciência, não devemos nos afligir com sua consonância ou dissonância em relação ao mundo externo que nos circunda. A fenomenologia, em sua essência, não se ocupa do mundo em si, mas sim do modo singular como cada sujeito constrói seu conhecimento desse mundo. A redução fenomenológica, destarte, exige a suspensão de atitudes, crenças, teorias e o enlevo de todo saber que concerne às coisas do mundo exterior, a fim de nos abeberarmos unicamente na vivência que se descortina diante de nós, pois essa, para cada indivíduo, constitui a realidade inalienável.

Noesis, como ato de percepção, e Noema, como o objeto dessa mesma percepção, forjam-se como os dois polos indissociáveis dessa experiência consciente. A coisa, enquanto fenômeno de consciência (noema), desponta como o ponto fulcral, evocando o clamor husserliano pela apreensão das coisas em si mesmas. Nesse diapasão, a redução fenomenológica representa, em seu âmago, a restrição do conhecimento ao fenômeno da experiência consciente, relegando o mundo real à condição de parêntese. Convém, porém, destacar que essa perspectiva fenomenológica não pressupõe a dúvida em relação à existência do mundo, como fazem os idealistas radicais, mas sim incita-nos a contemplar o conhecimento desse mundo na forma em que se efetua e na ótica que cada indivíduo alberga em seu ser.

Experiência Consciente e Direcionamento Intencional

Franz Brentano: O Eminente Mentor de Husserl

A experiência vivencial (Erlebnis) engloba toda manifestação psíquica; e na Fenomenologia, que abarca o estudo minucioso dessas vivências, torna-se imprescindível a análise dos objetos nelas contidos, haja vista que tais vivências são intrinsecamente intencionais, carregando consigo uma referência a um objeto. A consciência, por sua vez, se caracteriza por sua inata intencionalidade, pois está incessantemente voltada para algo. Essa intencionalidade, por sua vez, constitui a própria essência da consciência, manifestada por meio do significado, o qual permite à consciência dirigir-se a cada objeto.

Em sua notável obra "A Psicologia de um ponto de vista empírico" (1874), Franz Brentano assegura-nos: Podemos, assim, definir os fenômenos psíquicos como aqueles que, justamente por sua intencionalidade, já carregam em si um objeto. Tal afirmação converge com o pensamento de Husserl, que sustenta que os objetos dos fenômenos psíquicos não dependem da existência de uma réplica exata no mundo real, já que esses objetos estão intrinsecamente contidos nas próprias vivências. Descrever os atos mentais, portanto, implica descrever seus objetos, contudo, meramente como fenômenos, sem assumir ou afirmar sua existência no mundo empírico. O objeto, de fato, não necessita existir. É assim que ocorre uma nova interpretação do conceito de intencionalidade, antes restrito ao direcionamento da vontade.

Publicidade

A Eidética Redutiva

Reconhecida a entidade ideal, o noema, o passo subsequente engloba a "redução eidética", uma redução à abstração. Tal procedimento consiste na minuciosa análise do noema com o intuito de desvelar sua essência. Isto se deve ao fato de que não podemos despojar-nos da subjetividade e apreender as coisas em sua existência objetiva, haja vista que em toda experiência consciente convergem o que é percebido pelos sentidos e o modo pelo qual a mente se concentra naquilo que é percebido. Portanto, ao tomar consciência dos objetos ideais, uma realidade que é engendrada na esfera da consciência, não basta simplesmente isso; ao contrário, os diversos atos da consciência devem ser apreendidos em suas essências, essências que a experiência consciente de um indivíduo deve compartilhar com experiências semelhantes em outros indivíduos.

A redução eidética se faz necessária para que a filosofia possa atender às exigências de uma ciência genuinamente rigorosa, caracterizada pela clareza apodítica, uma certeza absolutamente transparente e destituída de ambiguidade - exigências anteriormente propugnadas por Descartes. Os objetos da ciência rigorosa devem ser essências atemporais, cuja atemporalidade é assegurada por sua idealidade, transcendendo o mundo mutável e efêmero da ciência empírica.

Tomemos como exemplo um triângulo. Podemos observar um triângulo de maiores dimensões, outro de menores dimensões, um com lados iguais e outro com lados desiguais. Esses pormenores da observação - elementos empíricos - devem ser proscritos a fim de alcançar a essência da ideia de triângulo - do objeto ideal que é o triângulo -, que consiste na configuração de uma figura com três lados situada no mesmo plano. Essa redução à essência, ao triângulo como um objeto ideal, constitui a redução eidética.

Edmund Husserl

A Apreensão do Invariante: Explorando a Essência Imutável

Indiferente é o questionamento fenomenológico sobre a forma como os sentidos se veem influenciados pelo âmbito tangível. Husserl, com sua perspicácia, traça uma linha divisória entre a percepção e a intuição. Pois, alguém pode efetivamente perceber e ter consciência de algo, porém, desprovido da intuição de seu significado profundo. A intuição eidética assume um papel vital no desdobramento da redução eidética. Nela reside o ato de apreender a essência primordial, o significado subjacente ao que foi meramente percebido. O método de abordar e compreender a essência, conhecido como Wesensschau, constitui-se na intuição das essências e das estruturas fundamentais. Em meio à pluralidade do mundo, o ser humano tende a criar uma miríade de variações a partir do dado original. Contudo, mesmo diante de tal diversidade, o ser humano possui a capacidade de focalizar sua atenção naquilo que permanece inalterável na multiplicidade, ou seja, na essência - aquela entidade idêntica que se conserva inabalável ao longo do processo de mutação incessante, e que Husserl, em sua nomenclatura sagaz, denominou de Invariante.

A ilustre Universidade de Friburgo, berço do ensino filosófico de Husserl e Heidegger.

No caso do exemplo do triângulo, o Invariante representa aquilo que permanece constante em todos os triângulos, independente das suas variações individuais. É o elemento essencial que não sofre alterações de um triângulo para outro. Ao reconhecermos uma figura com três lados no mesmo plano, estamos diante de um triângulo autêntico. Devemos exercer cautela diante das aparências enganosas do mundo, pois as essências estão frequentemente acompanhadas de características acidentais. Nesse sentido, é necessário explorar imaginativamente diferentes perspectivas em relação à essência para que o Invariante se revele.

O foco não recai na mera existência da coisa ou em sua forma de existir no mundo, mas sim no processo de conhecimento que ocorre por meio da intuição. Trata-se do ato primordial pelo qual uma pessoa apreende imediatamente o conhecimento de algo que encontra. Husserl definiu a Fenomenologia como um retorno à intuição, Anschauung, e à percepção da essência. É importante ressaltar que a ênfase dada por Husserl à intuição deve ser compreendida como uma rejeição a abordagens meramente especulativas na filosofia. Sua abordagem é concreta, voltada para o fenômeno e os diversos modos de consciência.

A Fenomenologia não se limita apenas às experiências sensoriais, pois também considera dados não sensoriais (categoriais) desde que sejam apresentados de forma intuitiva.

A Transcendentalização Redutiva

Apesar de dedicar-se incansavelmente até o ocaso de sua existência à definição do que denominou como Redução Transcendental, Husserl não alcançou uma clareza conclusiva. Em sua essência, trata-se da aplicação da redução fenomenológica ao próprio sujeito, o qual então se enxerga não como um ser empírico e real, mas como uma consciência pura, transcendental, geradora de todo significado.

Para o fenomenólogo, as palavras não possuem mera função de nomear tudo o que é visto ou ouvido, mas de destacar os padrões recorrentes em nossa experiência. Elas identificam nossos atuais dados sensoriais como pertencentes ao mesmo grupo dos que já foram anteriormente registrados. Uma palavra não descreve uma única experiência, mas sim um conjunto ou tipo de experiências; por exemplo, a palavra "mesa" engloba todas as diversas percepções sensoriais que normalmente associamos à aparência ou sensação de uma mesa. Assim, tudo o que o ser humano pensa, deseja, ama ou teme é intencional, ou seja, está relacionado a um desses universais (que são significados e, como tais, fenômenos da consciência). E, por sua vez, a totalidade dos fenômenos, o conjunto das significações, possui um significado maior que engloba todos os demais, e é isso que a palavra "Mundo" simboliza.

Na obra "Crise", Husserl descreve metodicamente duas abordagens para a redução transcendental, sendo uma por meio da reconsideração do mundo-da-vida já dado e outra por meio da psicologia.

O Diálogo entre a Fenomenologia e o Fenomenalismo

A fenomenologia deve ser distinta do Fenomenalismo, pois este último negligencia a complexidade da estrutura intencional da consciência humana em relação aos fenômenos. Enquanto a Fenomenologia investiga a relação entre a consciência e o Ser, o Fenomenalismo limita-se a considerar que tudo o que existe são sensações ou possibilidades permanentes de sensações, as quais são denominadas fenômenos. Ao contrário do fenomenalista, o fenomenólogo deve dedicar uma atenção meticulosa ao que ocorre nos atos da consciência, os quais ele denomina como fenômenos.

Outros Proeminentes Pensadores:

1. Max Scheler - Um dos Grandes Expoentes da Fenomenologia

Max Scheler
Max Scheler — um dos grandes expoentes da fenomenologia

Max Scheler (1874-1928) se destacou como um dos associados mais originais e dinâmicos de Husserl. Integrando o grupo de Munique, ele dedicou seu principal trabalho fenomenológico à análise de problemas relacionados aos valores e obrigações. Ampliando a ideia de intuição, Scheler introduziu uma intuição emocional ao lado da intuição intelectual, fundamentando a apreensão do valor.

 

2. Heidegger - A Distinção e as Divergências com Husserl

A Universidade de Friburgo,
A Universidade de Friburgo, da qual Heidegger foi reitor, entre 1933 e 1934

Heidegger, discípulo de Husserl, dedicou sua obra fundamental "Ser e Tempo" (1927) ao mestre, mas logo surgiram diferenças significativas entre eles. Enquanto Heidegger defendia a importância de discutir e absorver os trabalhos dos filósofos importantes na história da Metafísica, Husserl enfatizava repetidamente a necessidade de um começo radicalmente novo para a filosofia, colocando entre parênteses a história do pensamento filosófico, com poucas exceções como Descartes, Locke, Hume e Kant.

Heidegger seguiu seu próprio caminho, preocupado em explorar o que está oculto na experiência cotidiana. Em "Ser e Tempo", ele descreveu a estrutura do cotidiano, ou o estar no mundo, abrangendo projetos pessoais, relacionamentos e papéis sociais, reconhecendo-os como objetos ideais. Ao criticar Husserl, Heidegger destacou que a imersão no mundo, entre as coisas e a contingência dos projetos pessoais, representa uma forma de intencionalidade mais fundamental do que a mera contemplação ou o pensamento de objetos. E é essa intencionalidade fundamental que é a causa e a razão da intencionalidade subsequente.

 

3. Merleau-Ponty - Uma Contribuição Original na França

Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), importante representante do Existencialismo na França, também se destacou como o mais influente fenomenólogo francês. Suas obras "A Estrutura do Comportamento" (1942) e "Fenomenologia da Percepção" (1945) representam desenvolvimentos e aplicações originais posteriores da Fenomenologia na França.

Ao aplicar a Fenomenologia ao exame da existência humana, assim como Heidegger, Sartre e outros autores franceses, Merleau-Ponty desenvolveu uma linguagem sofisticada, repleta de termos que se popularizaram no meio acadêmico, mas também se tornaram um obstáculo ao entendimento da doutrina, inclusive entre os próprios intelectuais.

 

4. Sartre - Da Análise da Consciência ao Existencialismo

Desenho de Sartre feito por Reginald Gray
Desenho de Sartre feito por Reginald Gray

Jean-Paul Sartre (1905-1980) seguiu de perto o pensamento de Husserl em suas primeiras obras, como "A Imaginação" (1936) e "O Imaginário: Psicologia Fenomenológica da Imaginação" (1940), nas quais distinguiu entre consciência perceptual e consciência imaginativa, aplicando o conceito de intencionalidade de Husserl.

Em sua obra "A Filosofia do Existencialismo" (1965), Sartre enfatiza que a subjetividade deve ser o ponto de partida do pensamento existencialista, revelando assim sua essência fenomenológica. A negação de valores e o convite ao anarquismo implícitos na doutrina atraíram os pensadores de Esquerda, enquanto afastaram os conservadores de Direita.

Esses pensadores, Max Scheler, Heidegger, Merleau-Ponty e Sartre, representam algumas das contribuições mais significativas para a fenomenologia e suas aplicações em diferentes contextos filosóficos. Suas explorações e interpretações rebuscadas da experiência humana enriqueceram o campo da fenomenologia e influenciaram profundamente o pensamento filosófico do século XX.

A Fenomenologia e o Diálogo com Outras Abordagens Filosóficas

O Empirismo

Galileu (1564-1642), figura conspícua da estirpe empirista, desponta como um dos preclaros arquitetos desse movimento, ao fazer jorrar, sobre os objetos de estudo, o fluente manancial da experimentação. Foi nesse ímpeto audacioso que Galileu, arremessando sua luneta na direção do éter estrelado, revelou, em seguida, a ausência das celestiais esferas, que outrora reverberavam, segundo as premissas aristotélicas. Assim, Galileu teceu sua teoria com escassez de provas, embora sua tessitura teórica se apresentasse sólida e apoiada nas amarras do experimento. Porém, tais ousadias não passaram incólumes pelo crivo da Inquisição Católica, que empreendeu escrutínios com o intuito de suplantar as perplexidades que pairavam em torno do sistema aristotélico. A nova atitude naturalista de Galileu, permeada de ceticismo e observação, inflamou o ânimo de Francis Bacon (1561-1626), incitando-o a erigir tábuas que pudessem arrear a experimentação e erigir sólidas leis científicas. Tal empreitada, com celeridade, catapultou a humanidade a novos horizontes de conhecimento, no âmbito da astronomia, da química e da física. A mesma postura de observação e interpretação natural, alçada ao plano da psique e do saber, propiciou o florescimento do Corpus Empiricum, que viria a revolucionar a filosofia e alumbrar o dogma do Positivismo, isto é, o tratamento científico de todos os fatos e fenômenos, inclusive no domínio político.

John Locke

John Locke
John Locke

O filósofo empirista procurou no seu Essay Concerning Human Understanding (1690) demonstrar que todas as idéias são registros de impressões sensíveis (ou são derivadas de combinações, de associações entre essas idéias de origem sensível), e criticou o pensamento de Descartes (1596-1650) de que existiriam algumas idéias que seriam inatas - que o homem teria no espírito ao nascer -, como, por exemplo, a idéia de perfeição. Segundo John Locke, alguma coisa é enviada pelos objetos e é captada por nossos sentidos e dão causa à formação das idéias. Este pensamento é a base da teoria corpuscular da luz.

David Hume

De forma ainda mais enérgica do que seu ilustre predecessor, Locke, o eminente filósofo Hume lança uma arrebatadora refutação do valor do raciocínio dedutivo e clama veementemente que a relação de causa e efeito, por si só, não pode ser considerada como um conhecimento suficiente. Pois, ao examinar atentamente o espaço entre causa e efeito, percebemos apenas um mero encadeamento habitual, onde um acontecimento costumeiramente sucede ao outro. Somos condicionados a atribuir o título de causa ao primeiro evento unicamente porque ele ocorre invariavelmente antes do segundo, ao qual denominamos efeito. Assim sendo, um efeito não está necessariamente ligado a uma causa única e constante. Como exemplo, temos a constância do nascer diário do sol, o que nos leva a concluir, por hábito arraigado, que o sol nascerá também amanhã. Todavia, segundo a argumentação de Hume, não existe qualquer garantia de que o nascer do sol ocorrerá inelutavelmente no próximo dia. No entanto, por meio de repetição e costume, abraçamos uma crença arraigada (belief) de que tal evento se concretizará.

Psicologismo e Historicismo

A influência da psicologia associativa de Locke sobre a filosofia, ou melhor, sobre a teoria do conhecimento, foi batizada de Psicologismo, um termo que engloba a convicção de que os dilemas epistemológicos, ou seja, a validade do conhecimento humano, bem como a própria questão da consciência, podem ser resolvidos por meio de uma investigação científica dos processos psicológicos. Nesse sentido, a Psicologia é abraçada como a pedra fundamental da Lógica, estabelecendo-se a premissa de que a lógica, como um domínio filosófico, é, em essência, uma ciência. Sua função reside em ser uma disciplina prescritiva, normativa dos atos mentais, das formas associativas do pensamento, e suas leis são meramente guias para um pensamento adequado, não sendo consideradas como fonte de verdade. A filosofia, nesse contexto, caiu em desuso, tornando-se uma mera psicologia científica intrinsecamente ligada ao Positivismo.

Por sua vez, o historicismo reflete a mesma inclinação empirista em busca de uma interpretação científica da História. De acordo com essa corrente, os eventos históricos só podem ser compreendidos e julgados adequadamente quando confrontados com a cultura estética, religiosa, intelectual e moral do período em que ocorreram, e não em relação a valores morais universais e perenes.

Idealismo

A Fenomenologia husserliana se caracteriza como uma manifestação do idealismo, haja vista sua abordagem dos objetos ideais, das essências das coisas, em consonância com os idealistas como Platão, Hegel e outros. Desde os ensinamentos platônicos, a filosofia nos ensina que, por intermédio dos sentidos (considerando-se a construção das ideias na mente humana através da informação sensorial, tal como proposto por Locke), diversas imagens possíveis de um objeto emergem, porém todas elas convergem para um mesmo significado, todas se reduzem a um único sentido, todas referem-se ao mesmo objeto ideal, portando a mesma ideia e incorporando a mesma essência. Seja qual for a imagem de uma mesa (exemplo comum nos textos), ela conterá certos componentes que atribuem a cada uma delas o significado de "mesa", independentemente de seu tamanho, altura, perspectiva visual, deficiências visuais dos observadores, entre outros aspectos. Em todas as circunstâncias, esses componentes fundamentais permanecem inalterados, garantindo que o objeto seja compreendido e interpretado como uma "mesa".

Platão

Platão
Platão

Segundo o pensamento platônico (428-347 AC), a essência intrínseca de cada entidade, denominada de universais, residia no Mundo das Ideias, ao qual as almas humanas eram capazes de vislumbrar antes de sua encarnação terrena. Aristóteles (384-322 AC), por sua vez, reconheceu prontamente a importância desse postulado, porém transferiu a essência das coisas para o âmbito concreto do mundo, para a própria substância das coisas em si. Tomemos o exemplo de uma mesa: nela residia algo que constituiria sua essência, algo que, independentemente de quaisquer variações acidentais, conferiria a ela a condição de mesa, distinguindo-a de qualquer outra entidade. Entretanto, Husserl, em sua abordagem fenomenológica, extrai a essência do objeto e a deposita na mente humana. A mesa enquanto objeto ideal, o fenômeno da representação da mesa na mente, independe da existência efetiva de qualquer mesa no mundo externo, no domínio da realidade tangível, pois a essência da mesa encontra-se intrinsecamente imbuída na própria esfera mental humana.

Immanuel Kant

Immanuel Kant
Immanuel Kant

A consonância entre Husserl e Kant reside na busca compartilhada pela condição veraz do conhecimento. Husserl postula que a verdade reside no conhecimento das essências, enquanto Kant sustenta que esta se encontra limitada às categorias do que é possivelmente apreendido pelo intelecto.

Consoante à filosofia do conhecimento (Crítica) de Immanuel Kant (1724-1804), somos incapazes de compreender integralmente as coisas, uma vez que nem todos os sinais provenientes delas são admitidos pela faculdade cognitiva, o que resulta em nossa limitação para conhecer a realidade em sua plenitude. Aquilo que podemos apreender do real é apenas aquilo que a mente é capaz de assimilar, o qual Kant denomina fenômeno; por sua vez, aquilo que permanece incognoscível para nós é intitulado de noumeno. Desse modo, Kant apropriou-se da série de conceitos elencada por Aristóteles como o que podemos afirmar acerca das coisas, convertendo-a em uma sequência de categorias que representam aquilo que nos é possível conhecer sobre elas. Para Kant, os dados empíricos possuem validade, porém jamais uma validade absoluta ou apodítica. Da mesma forma, Husserl nutre dúvidas em relação ao conhecimento científico dos fatos, sendo sua busca voltada para o conhecimento científico das essências.

Fenomenologia e Psicologia

A Fenomenologia, entrelaçada com o domínio da Psicologia, assume uma notável importância e exerce um profundo impacto. Tal relevância é prenunciada pelos esforços precursorais de Franz Brentano e do erudito alemão Carl Stumpf, os quais solidificaram o alicerce dessa abordagem. A conjunção entre o renomado psicólogo norte-americano William James, a escola de Würzburg e os proponentes da Psicologia da Gestalt, operando em paralelo, compreende um panorama propício para a aplicação e a adaptação desse método. Sob essa égide, diversas emoções, patologias e fenômenos, tais como separação, solidão, solidariedade, experiências artísticas e religiosas, o enigma do silêncio e da palavra, bem como a percepção e o comportamento, têm sido objeto de estudo.

Contudo, é na esfera da psiquiatria que a Fenomenologia, possivelmente, desempenha sua contribuição mais significativa. Nesse âmbito, Karl Jaspers, um destacado existencialista contemporâneo de origem alemã (1883-1969), enfatizou a importância da investigação fenomenológica na apreensão da experiência subjetiva de um paciente.

O paciente psicológico, em sua condição de paciente, estabelece-se mediante o objeto ideal que, em sua mente, corresponde à realidade, independentemente das contingências externas. Tal construção ideal difere do padrão comum dos objetos ideais que habitam o universo mental de outras pessoas em relação aos mesmos estímulos sensoriais. O psicólogo, assim, almeja decifrar o significado inerente aos objetos do mundo ideal do paciente, a fim de abordar adequadamente sua condição psicológica.

A trilha aberta por Jaspers encontrou sequência no percurso do suíço Ludwig Binswanger (1881-1966) e de vários outros, incluindo Ronald David Laing (1927-1989) na Inglaterra, que aderiram à abordagem existencialista ateísta de Sartre, e Viktor Frankl (1905-1997) com sua teoria da logoterapia na Áustria. Ademais, de maneira pioneira, Halley Bessa (1915-1994) no Brasil, contribuiu na órbita do existencialismo cristão proposto por Gabriel Marcel (1889-1973).

A Contenda com a Fenomenologia: Uma Perspectiva Crítica

No domínio psicológico, emerge a objeção à viabilidade de vivenciar, juntamente com o paciente, sua própria visão de mundo, sua situação e sua própria identidade. Pois, dado que a subjetividade também se faz presente no psicólogo, torna-se impossível que o terapeuta desfrute de uma intuição desses aspectos que seja completamente desprovida de seu próprio eu, de seu próprio pensamento, a fim de evitar a inserção de impressões pessoais indesejadas em sua análise.

A Fenomenologia propugna que o terapeuta deve empreender a compreensão da subjetividade alheia por meio de sua própria subjetividade. Na verdade, requer-se um grupo de psicólogos consultores, cujas visões possam convergir para uma compreensão mais aprofundada de um fenômeno, ou seja, uma intersubjetividade. Contudo, é necessário lembrar que, rigorosamente falando, o terapeuta não possui nenhum critério absolutamente confiável para aprovar ou reprovar qualquer comportamento alheio, apesar de se sentir confortável com as estatísticas que delineiam a normalidade das atitudes e costumes.

No âmbito político e jurídico, a abordagem da subjetividade reside na Democracia, em que a problemática da subjetividade é contornada por meio do consenso, pela coincidência estatística de opiniões, pelo voto de um conselho ou da população, de modo que a subjetividade de um único indivíduo, ou de uma minoria de intelectuais, não prepondere. Na esfera da Moral e da Religião, a âncora reside nas escrituras, tidas como revelação divina.

Conclusão

Após uma análise aprofundada sobre a Fenomenologia e suas aplicações em diversos campos do conhecimento, é possível perceber a relevância desse enfoque filosófico na compreensão da subjetividade humana e na busca por uma apreensão mais autêntica do mundo ao nosso redor. A Fenomenologia nos convida a explorar as experiências individuais e coletivas, reconhecendo a importância das perspectivas pessoais na construção do conhecimento.

No campo da psicologia, a abordagem fenomenológica revela a necessidade de considerar a subjetividade tanto do terapeuta quanto do paciente, buscando uma compreensão mútua e empática dos fenômenos psicológicos. A intersubjetividade e o diálogo entre diferentes visões de mundo tornam-se essenciais para uma análise mais completa e enriquecedora.

Na esfera política e jurídica, a Fenomenologia levanta questionamentos sobre a natureza da subjetividade no processo de tomada de decisões coletivas. A democracia surge como um mecanismo que busca equilibrar as múltiplas perspectivas, promovendo o diálogo, a deliberação e o consenso como base para uma governança mais justa e inclusiva.

No campo da moralidade e da religião, a Fenomenologia nos lembra da importância de respeitar e valorizar a diversidade de interpretações e crenças, reconhecendo que cada indivíduo possui uma relação singular com o divino e com os valores éticos. A busca pela compreensão mútua e o diálogo inter-religioso tornam-se fundamentais para promover a tolerância e a coexistência pacífica.

Em suma, a Fenomenologia nos convida a transcender visões simplistas e a adotar uma postura mais aberta e receptiva às múltiplas perspectivas que compõem a experiência humana. Ao reconhecer a importância da subjetividade e promover o diálogo respeitoso, somos capazes de construir uma sociedade mais inclusiva, empática e consciente da riqueza que reside na diversidade de pontos de vista.

Portanto, é através da valorização da subjetividade, do diálogo interdisciplinar e da busca por uma compreensão mais autêntica que podemos avançar em direção a um mundo mais harmonioso, onde as diferenças são celebradas e onde o conhecimento é enriquecido pela multiplicidade de experiências e perspectivas.


Bibliografia:


Berrios, G. E. (1989). O que é fenomenologia? Uma revisão. Revista da Sociedade Real de Medicina, 82, 425-428.

Farber, M. (1967). Fenomenologia e existência: rumo a uma filosofia dentro da natureza. Nova York: Harper Torchbooks.

Langdridge, D. (2007). Psicologia fenomenológica: teoria, pesquisa e métodos. Londres: Pearson.

Laverty, S. M. (2003). Fenomenologia hermenêutica e fenomenologia: uma comparação de considerações históricas e metodológicas. International Journal of Qualitative Methods, 2(3), 21–35.

Merleau-Ponty, M. (1962). Fenomenologia da percepção. Londres: Routledge & Kegan Paul.

van Manen, M. (1997). Pesquisando a experiência vivida: ciência humana para uma pedagogia sensível à ação (2ª ed.). Toronto: The Althouse Press.

Postar um comentário

0 Comentários

'