Para Além do Binário: Um Percorrido pela Antropologia do Gênero, Cultura, Comportamento e Sexualidade

Por muito tempo, a sociedade ancorou a compreensão de gênero na dicotomia tradicional de mulher e homem, refletindo nos termos vagina e pênis

Antropologia de gênero. Imagem: reprodução/Brainly

Introdução

No vasto cenário da Antropologia, a exploração do gênero como campo de estudo emerge como um intrigante e contemporâneo divisor de águas. Enquanto essa disciplina consolidada desvendava as complexidades culturais, a noção de gênero trilhava uma jornada própria, muitas vezes desafiando as fronteiras convencionais. Joan Scott, renomada historiadora norte-americana, nos conduz a um ponto fundamental: o gênero, inicialmente forjado em estruturas patriarcais, agora desafia as dicotomias antiquadas (SCOTT, 1995). Então, embarquemos juntos em uma jornada de aprendizado que desvendará as complexas interconexões entre cultura, comportamento e sexualidade.

Ao abordar o gênero, não podemos ignorar sua ligação intrínseca com o sexo. Por muito tempo, a sociedade ancorou a compreensão de gênero na dicotomia tradicional de mulher e homem, refletindo nos termos vagina e pênis (SWAIN, 2001). Contudo, esta rígida fundamentação já não se sustenta quando o espectro de identidades emerge, desafiando esse padrão antiquado (COLLING, 2016). Conforme exploramos a evolução do conceito, testemunhamos uma mudança notável, transcendendo os limites da dicotomia original.

A época em que o conceito de gênero surgiu é crucial para compreender sua trajetória. À medida que as mulheres buscavam ativamente seus direitos, a terminologia "mulher" tornou-se insuficiente, pesada de conotações sociais. Nesse contexto, o termo "gênero" emergiu como uma alternativa mais flexível, capaz de abraçar a fluidez epistemológica e ontológica (SCOTT, 1995). Esse realinhamento semântico não apenas desafia as narrativas tradicionais, mas também incorpora uma nova perspectiva sobre a interseção entre política, poder e identidade.

À medida que mergulhamos nas raízes históricas da binarização de existências e nas definições embasadas nos corpos sexualizados, revela-se uma narrativa secular que antecede até mesmo a ascensão do patriarcado e do patriarcalismo. O gênero, portanto, não se trata apenas de uma construção contemporânea, mas sim de um fenômeno entrelaçado nas próprias fibras da sociedade.

Nesta exploração da Antropologia do Gênero, nosso objetivo é sondar os limites do que sabemos e compreender como as noções de cultura, comportamento e sexualidade tecem uma trama intrincada e em constante evolução. À medida que desvendamos as camadas dessa complexa narrativa, somos desafiados a redefinir nossas percepções, romper com as convenções e abraçar a diversidade que molda nossa compreensão do ser humano.

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Cultura, Comportamento e a Complexidade da Sexualidade: Malinowski e a Dinâmica da Vida Familiar entre os Trobriandeses

Explorar o domínio da Antropologia como um campo de investigação dedicado primordialmente à criação cultural de populações específicas equivale a reconhecer que essa disciplina se propõe, por meio de meticulosa pesquisa e análise científica, a decifrar a intrincada maneira pela qual cada cultura e sistema simbólico se manifestam. Nesse empenho, desvelamos não apenas os porquês subjacentes a tal empreendimento investigativo, mas também o cerne pulsante dele, discernindo os possíveis desdobramentos e as reverberações atreladas a essa exploração sagaz.

PROVOQUE A REFLEXÃO

A sociedade, em sua tessitura, encontra-se moldada por uma matriz de poder que, em sua maioria, é delineada por normas branco-cis-heteronormativas e capacitistas/corporais (SIERRA; CÉSAR, 2014; MELLO, 2016; NASCIMENTO, 2021). Tomemos como exemplo a questão do trabalho infantil, que é veementemente repudiado ao considerar os danos físicos, sociais e psicológicos que acarreta às crianças.

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Agora, adentremos o território da reflexão: imagine uma comunidade indígena onde o trabalho infantil é não apenas aceito, mas encorajado pelos anciãos, com o objetivo de incutir senso de responsabilidade e coletividade nas crianças. Dentro dessa matriz cultural única, a prática ainda poderia ser categorizada como equivocada? Tal questionamento nos leva a explorar a sutileza das linhas divisórias entre valores universais e contextos culturais, destacando a complexa interação entre normas preconcebidas e costumes arraigados.

A COMPLEXIDADE

A Antropologia não se propõe a endossar indiscriminadamente todas as práticas, mas sim a reconhecer que em cada agrupamento cultural florescem concepções e crenças singulares, imunes a interferências externas. O que na nossa sociedade poderia ser rotulado como violência, encontra-se dentro de outro contexto como uma prática cotidiana, enredada em cuidados com o corpo e interpretações intrínsecas àquela comunidade específica (MAUSS, 2003).

Tais observações lançam os pilares necessários para continuarmos nossa exploração educativa. Embora algumas ideias aqui apresentadas possam à primeira vista parecer antiquadas, são peças essenciais para construir uma compreensão atual e abrangente dos fenômenos de gênero e das perspectivas antropológicas.

O fenômeno do relativismo cultural, uma vertente da pesquisa antropológica, emerge como contraponto ao positivismo e ao etnocentrismo. Hoje, ao lado do relativismo cultural, emergem também as críticas decoloniais e antieurocêntricas (CASTRO, 2020). A primeira crítica parte da premissa de que o conhecimento científico não deve monopolizar todas as fontes de saber confiável. Enquanto isso, o etnocentrismo sustenta que os valores culturais de um indivíduo devem prevalecer sobre os outros, levando-o a considerar suas próprias perspectivas superiores às demais (ALMEIDA, 1999). Isso nos instiga a desvendar as tramas complexas entre perspectivas culturais, descolonização do pensamento e a evolução do conhecimento.

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ENTRELACE DAS IDEIAS

O relativismo, ao penetrar no terreno da Antropologia, inflamou discussões que reconfiguraram a abordagem dos antropólogos/as nas pesquisas, pautadas por um "respeito genuíno pela cultura e sociedade de outras nações" e uma "cautela extrema em relação à objetividade", acompanhada da "recusa em interferir ou alterar os costumes e tradições de um povo" (MENESES, 2020, p. 7).

Ao explorar o âmbito do relativismo cultural, uma trajetória específica se desenha:

• A teoria evolucionista;

• O relativismo cultural de Franz Boas;

• A Antropologia Social de Malinowski.

Datando de 1859 e forjada por Charles Darwin, a teoria da evolução lança raízes em uma concepção de sucessão gradual nos estratos de progresso, moldada pela seleção natural. Esta, por sua vez, determina quais indivíduos se adequam mais harmonicamente às mutações do ambiente, tendo como base suas próprias características (LOPES; VASCONCELLOS, 2008).

Desse modo, as correntes do pensamento, desde o relativismo até a teoria da evolução, formam uma intricada rede de percepções que ecoam nas fundações da Antropologia e reverberam na maneira como observamos, interpretamos e decodificamos as complexidades de sociedades distintas e suas dinâmicas evolutivas.

ENTRETECIDO NO CONTEXTO

Face à comoção fervente que varreu a sociedade da época, aliada à visibilidade dos estudos de Darwin, sua teoria consolidou-se como um pilar acadêmico, permanecendo, por um período, como uma perspectiva plausível. Nas dobras das Ciências Sociais, surgiram as teorias socioevolucionistas, que, embora nascidas a partir da teoria-mãe, tornaram-se degeneradas, enraizadas em hierarquias, especulações e no etnocentrismo e eurocentrismo arraigados dos estudiosos da época (CASTRO, 2005).

No empenho de dissolver o domínio das teorias socioevolucionistas daquele tempo, o antropólogo inglês Franz Boas, uma das principais vozes do relativismo cultural da época, sustentou a tese que questionava a existência de diferenças substanciais entre culturas mais "evoluídas" e aquelas consideradas "menos avançadas". Segundo Boas, as culturas possuem suas particularidades, afastando-se de uma perspectiva de superioridade, e estão em níveis variados que não se submetem a uma hierarquia evolutiva (CASTRO, 2005).

Assim, as correntes de pensamento que ecoaram naqueles tempos estão interligadas em uma intrincada tapeçaria de influências e contra-influências, cujos fios se entrelaçam desde a teoria evolucionista até a contestação de Boas, delineando uma evolução intelectual em si mesma.

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Considerando as singularidades intrínsecas de cada cultura, o processo de compreensão direciona-se para suas peculiaridades. Em outras palavras, a apreensão de uma cultura específica deve ser centrada em si mesma e nas suas interconexões internas. Essa abordagem profunda demanda uma imersão completa no tecido da cultura em questão. O conceito em si traz consigo uma perspectiva adicional: não é possível analisar um grupo ou comunidade com base em modelos preexistentes; uma cultura encontra sua explicação no contexto contemporâneo em que se insere (ALMEIDA, 1999).

Pelo fato de provocar uma ruptura significativa dentro do cenário científico, tornando-se uma autêntica revolução no paradigma antropológico, Franz Boas alcança renome global, deixando sua marca em inúmeras escolas ao redor do globo e moldando o percurso de futuros antropólogos. Entre eles, figura o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre, autor de "Casa-grande e Senzala" e defensor do chamado mito da democracia racial, que argumenta pela ausência de racismo no Brasil.

Algum tempo depois, um novo e destacado protagonista surge no panorama da Antropologia: Bronisław Kasper Malinowski.

Bronisław Kasper Malinowski

Natural de Cracóvia em 1884, Malinowski emergiu como um dos pilares da Antropologia Social. Após ter se aventurado em disciplinas ligadas às Ciências Exatas, tomou o rumo da Antropologia, transformando-se desde o início em um defensor ativo da reformulação da pesquisa nesse domínio, então circunscrito aos bastidores das grandes universidades.

Visões

Malinowski sustentava que compreender uma cultura estava inextricavelmente ligado a uma imersão direta nela, daí a essência do trabalho de campo, a etnografia. Essa crença constitui sua principal contribuição para a perspectiva relativista cultural inicialmente proposta por Boas. Com isso, a abordagem antropológica, até então ancorada em fontes secundárias - livros, registros e relatórios - evoluiu para a obtenção de dados primários, ou seja, o contato direto com o objeto de estudo. Foi o surgimento do que hoje chamamos de trabalho de campo, onde os pesquisadores mergulham na alteridade, na cultura, indo além ao viver e experimentar o ambiente circundante, transformando-se, assim, em narradores ativos (MALINOWSKI, 1984).

Novos Horizontes

Este marco impulsionou uma das metodologias mais proeminentes na pesquisa antropológica - a etnografia - que é atualmente aplicada em uma miríade de campos do conhecimento. A essência dessa abordagem está na observação das pessoas dentro de seu próprio meio, permitindo que fenômenos imprevistos, porém intrínsecos a essa cultura, venham à tona e sejam captados durante o processo da investigação (FONSECA, 2000; GIL, 2018).

Explorando Expressões de Gênero:

Margaret Mead e as Matizes

Temperamentais em Três Sociedades

Destacando-se na vertente culturalista norte-americana, Margaret Mead brilhou como uma das luminares. Nascida em 16 de dezembro de 1901 na Pensilvânia, trilhou os caminhos da Psicologia e da Antropologia na Universidade de Columbia, esta última sob a tutela de Franz Boas. Sua produção acadêmica, predominantemente entrelaçada entre cultura e personalidade, a erigiu como uma das figuras proeminentes nos estudos de gênero, coetânea à época em que Simone de Beauvoir aprofundava pesquisas na Europa (FELIPPE; OLIVEIRA-MACEDO, 2018).

Dentre sua prolífica obra, permeada pelo método etnográfico, ressalta-se "Sexo e Temperamento em Três Sociedades Primitivas", desencadeada em 1931 na Papua-Nova Guiné, focalizando três grupos nativos: Arapesh, Mundugumor e Tchambuli. Lançado em 1935, o livro aponta que "características associadas às diferenças sexuais, frequentemente categorizadas como temperamentos masculinos e femininos, não são inerentes aos sexos, mas reflexos da aprendizagem cultural" (FELIPPE; OLIVEIRA-MACEDO, 2018, on-line), fomentando nossa exploração.

Dado que os temperamentos, tanto masculinos quanto femininos, são produto da cultura, podem ser transmitidos de geração em geração, fortificando a ideia de que a cultura é a forja do comportamento e da personalidade humanos, originando as discrepâncias entre as condutas masculinas e femininas. Importante notar: as condutas são internalizadas, de modo que não há condutas intrínsecas a cada gênero; o que existe são construções sociais ligadas aos gêneros, naturalizadas e transmitidas ao longo das gerações.

Além das considerações acerca dos papéis de gênero, Mead identifica um traço adicional, consistente em todas as aldeias, que define um "tipo diferente de indivíduos": os desadaptados. Estes desafiavam os papéis de gênero delineados pela estudiosa e transgrediam as expectativas sociais. Adicionalmente, manifestavam comportamentos antagônicos aos observados por Mead em cada grupo. Enquanto os Arapesh eram afáveis e corteses, os desadaptados exibiam agressividade. Em contrapartida aos Mundugumor agressivos, os desadaptados se mostravam doces e afáveis. E, entre os Tchambuli, a personalidade divergia do estereótipo de gênero: as mulheres desadaptadas eram frágeis, enquanto os homens desadaptados adotavam uma postura autoritária (MEAD, 2009).

As análises de Mead convergem com as normas sociais prevalecentes nos Estados Unidos, enraizadas e aceitas, onde o patriarcado imperava. Dessa maneira, as obras de Mead, ao contrário de estudos realizados por antropólogos homens como Malinowski, enfrentaram intensas críticas, incluindo alegações de que ela havia fabricado histórias, especialmente a dos Tchambuli, onde as mulheres detinham posições de liderança (FELIPPE; OLIVEIRA-MACEDO, 2018).

Conclusão: Reflexões Além das Fronteiras Culturais

A exploração da intersecção entre cultura, gênero e personalidade, traçada através das contribuições de pensadores como Margaret Mead, Franz Boas e Bronisław Kasper Malinowski, nos conduz a um intrigante território de análise. No cerne dessa jornada intelectual, emergem questionamentos essenciais sobre a natureza das identidades, comportamentos e normas que delineiam nossa compreensão do mundo.

As narrativas esculpidas por Mead desvendam a influência profundamente enraizada da cultura na forja dos temperamentos, desmistificando ideias preconcebidas sobre as essências masculinas e femininas. Sua assertiva defesa do trabalho de campo como a lente essencial para compreendermos as nuances das culturas reafirma a imperatividade de uma abordagem imersiva. Nesse sentido, a etnografia não apenas captura os contornos culturais, mas também revela as complexidades humanas e identitárias que desafiam as fronteiras tradicionais.

Ao lado de Mead, Boas e Malinowski pavimentaram um caminho que redefiniu o escopo da Antropologia. O relativismo cultural de Boas desafia a rigidez das classificações evolucionistas, propondo uma visão mais pluralista da diversidade humana. A pesquisa de campo de Malinowski, ao mergulhar profundamente nas entranhas culturais, sedimentou o alicerce da etnografia como a ponte entre acadêmico e vivência, essência e aparência.

Nesse contexto, a jornada intelectual destes pensadores ecoa na contemporaneidade. Em um mundo cada vez mais interconectado, suas contribuições nos convocam a questionar as fronteiras do conhecimento convencional, a desafiar as normas impostas e a reconhecer a complexidade das identidades de gênero em constante evolução. A interação entre cultura e gênero, tal como moldada por esses pioneiros, convoca-nos a expandir nossa compreensão para além das barreiras culturais, celebrando a diversidade e reconhecendo a mosaico multifacetado que compõe a experiência humana.

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