O papel da antropologia moral para a ética de kant

A base da ética kantiana é composta por princípios puros, ou a priori, da razão. Kant demonstra que há uma única razão que se diferencia apenas pela forma como é aplicada a objetos específicos.

Immanuel Kant
Immanuel Kant. Foto: Pinterest 

Filosofia- Dentro da filosofia, ao examinarmos as diferentes visões dos filósofos, podemos encontrar alguns termos que se tornaram comuns. Por exemplo, ao discutir teoria do conhecimento, é comum considerar Patão um idealista e Aristóteles um empirista. Um dos filósofos que teve sua teoria rotulada, agora no campo da ética, foi o filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804). Tornou-se habitual chamar a teoria moral desenvolvida por Kant de rigorista, significando que essa teoria seria muito exigente com a natureza humana, sempre demandando que o indivíduo respeite a lei moral. Essa qualificação se baseia principalmente na leitura da Fundamentação da Metafísica dos Costumes, obra publicada por Kant em 1785, na qual ele argumenta que a ação genuinamente moral é aquela realizada apenas por dever, sem considerar elementos sensíveis como sentimentos, impulsos, inclinações e paixões.

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Nos últimos anos, uma parcela específica da teoria moral proposta por Kant tem despertado crescente interesse entre os pesquisadores que se dedicam à análise da ação humana e seus fundamentos. Essa parte da teoria moral de Kant aborda aspectos mais práticos da conduta humana, examinando as ações que as pessoas realizam em diversos aspectos de suas vidas. Estamos nos referindo à "Segunda parte da moral de Kant", um termo frequentemente empregado por Louden em seus escritos, e que Kant denominou de antropologia moral.

No entanto, é importante distinguir a antropologia moral e sua função dentro da teoria das ações humanas da obra escrita por Kant, intitulada Antropologia de um ponto de vista pragmático, de 1798. Embora o termo "Antropologia" apareça em ambas as formulações, é necessário esclarecer o sentido e o uso que Kant faz desse termo nos diferentes contextos em que ele é empregado. Para isso, começaremos examinando o propósito de Kant ao escrever sua Antropologia e, em seguida, investigaremos o significado de uma antropologia moral dentro do contexto mais amplo da teoria ética kantiana.

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Partimos da tentativa de compreender o significado da obra de Kant, a Antropologia de um Ponto de Vista Pragmático. Nesse sentido, podemos começar considerando a perspectiva de Clélia Aparecida Martins, tradutora da obra para o português, que observa em sua introdução que a obra foi escrita entre 1796 e 1797, mas a última versão, organizada pelo próprio Kant, foi publicada em 1798. O início da obra remonta ao período anterior à fase crítica do pensamento kantiano, quando Kant, ao expandir a primeira parte de seu curso de metafísica, derivou um curso independente sobre antropologia. Esse curso foi ministrado pela primeira vez no semestre de inverno de 1772-1773 e continuou sendo oferecido em todos os semestres de inverno subsequentes até 1796. Entendido?

Com essa perspectiva inicial, podemos notar que a reflexão de Kant sobre o tema da antropologia, seu significado e propósito, amadureceu ao longo do tempo. Não foi um assunto que o interessou apenas em um momento específico de sua vida. Essa importância e relevância do tema podem ser mais claramente compreendidas em uma passagem conhecida de sua lógica, onde ele apresenta a distinção entre os conceitos de filosofia, no sentido escolástico, e no sentido cosmopolita. Ele argumenta que o âmbito da filosofia nesse sentido cosmopolita pode ser resumido nas seguintes questões:

1.   O que posso conhecer?

2.   O que devo fazer?

3.   O que me é permitido esperar?

4.   O que é o ser humano?

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A primeira pergunta aborda a metafísica, a segunda a moral, a terceira a religião e a quarta a antropologia. No entanto, essencialmente, todas podem ser relacionadas à antropologia, já que as três primeiras questões remetem à última. A questão sobre o significado, ou em outras palavras, sobre o papel que o conhecimento do elemento humano desempenha em relação aos outros tipos de conhecimento, é de extrema importância. Kant está sugerindo que responder a todas as grandes questões filosóficas é significativo porque, ao fazê-lo, ganhamos um entendimento mais profundo de quem realmente somos. No entanto, para alcançar esse autoconhecimento, não podemos nos contentar apenas com discursos eloquentes ou palavras bonitas. Precisamos nos envolver na prática, pois é nela que muitas vezes encontramos a verdade crua, sem disfarces, máscaras ou subterfúgios.

O prefácio da Antropologia começa com Kant afirmando que todos os avanços na civilização têm como objetivo final que os conhecimentos e habilidades adquiridos sejam utilizados para o benefício do mundo. No entanto, o objeto mais importante para os quais essas habilidades podem ser aplicadas é o próprio ser humano, porque ele é o fim último. Em outras palavras, todo conhecimento adquirido pelo homem, por meio das diversas experiências possíveis na vida, encontra na humanidade o principal objetivo de sua aplicação, pois a humanidade é considerada um fim em si mesma. Uma antropologia, que é uma doutrina sistematicamente composta sobre o conhecimento do ser humano, pode ser vista de duas maneiras: fisiológica ou pragmática. No primeiro caso, o conhecimento fisiológico do ser humano investiga o que a natureza faz com ele, enquanto o pragmático examina o que ele faz consigo mesmo, ou o que ele pode e deve fazer como um ser que age livremente.

Foto: Elizabeth Labra Sprohnle
Foto: Elizabeth Labra Sprohnle/Pinterest 

Em outras palavras, no primeiro caso, ao examinarmos o aspecto puramente fisiológico, nos deparamos com os aspectos determinísticos impostos pela natureza. Aqui, o homem é apenas um joguete das forças causais naturais, incapaz de interferir ou modificar esse processo com sua vontade. Porém, no segundo caso, ao considerarmos o aspecto pragmático desse conhecimento do homem, descobrimos o que o homem realmente faz, pode ou deve fazer a si mesmo e aos outros. Nesse contexto, a liberdade de escolha desempenha um papel fundamental diante das decisões da razão ou dos impulsos da sensibilidade. Para esclarecer ainda mais esse tipo de antropologia, Kant sugere que uma antropologia, mesmo que compreenda um amplo conhecimento das coisas do mundo, como os animais, plantas e minerais de diferentes regiões e climas, não é propriamente considerada pragmática se não incluir o conhecimento do ser humano como um cidadão do mundo.

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Uma questão importante surge aqui: como podemos adquirir esse conhecimento do homem como cidadão do mundo? Um dos métodos possíveis seria viajar ou ler relatos de viagens. No entanto, Kant argumenta que isso por si só não é suficiente. Para alcançar um entendimento mais profundo, é necessário primeiro ter adquirido o conhecimento do ser humano em seu próprio ambiente, através das interações com seus compatriotas na cidade ou no campo. Sem esse conhecimento prévio do ser humano local, a antropologia do cidadão do mundo permanece bastante limitada. Kant não elabora mais essa afirmação imediatamente após. No entanto, podemos interpretar isso como uma indicação de que a verdadeira essência da capacidade de ação do homem sobre o homem reside nos relacionamentos pessoais que cultivamos ao longo de nossas vidas. Em outras palavras, é através de nossas interações com familiares, amigos, vizinhos, colegas de trabalho e outras pessoas que revelamos quem realmente somos. Especialmente quando esses relacionamentos se aprofundam e revelam nosso caráter verdadeiro, com todas as suas falhas, defeitos e paixões, expondo a verdadeira natureza de nosso eu interior e suas pretensões. Assim, um pai de família pode ser visto como um cidadão exemplar na rua, respeitando as leis e sendo caridoso. No entanto, muitas vezes, dentro de casa, ele pode revelar uma carga emocional intensa, mostrando-se ciumento, violento e egoísta.

Ao tentar estabelecer uma antropologia como ciência, nos deparamos com algumas dificuldades inerentes à natureza humana, conforme mencionado por Kant. A primeira delas é descrita da seguinte maneira:

1.   Quando um indivíduo percebe que está sendo observado e que alguém está tentando analisá-lo, ele tende a se sentir desconfortável e constrangido, e não consegue se mostrar como realmente é. Em vez disso, ele tende a fingir e evita ser compreendido verdadeiramente. Para esclarecer melhor a afirmação de Kant, podemos entendê-la da seguinte forma: em geral, uma pessoa perde sua espontaneidade quando sabe ou sente que está sendo observada. A consciência da observação dos outros influencia diretamente seu comportamento, levando-o a agir de forma diferente do habitual, seja de maneira mais ingênua, como por timidez ou reserva, especialmente observável em crianças, ou de maneira mais astuta e dissimulada, ao fingir ser uma pessoa de elevado caráter moral ao realizar ações altruístas que parecem indicar uma profunda bondade e consciência social.

2.   Mesmo quando uma pessoa tenta investigar a si mesma, ela se encontra em uma situação delicada, especialmente quando está sob a influência de uma emoção ou afeto, estados que geralmente não permitem fingimento. Quando os motivos de suas ações estão em jogo, ela não se observa; e quando ela se observa, os motivos estão em repouso.

3.   Uma terceira e última dificuldade no entendimento do ser humano está relacionada ao seu caráter habitual, ou seja, à sua propensão para desenvolver diferentes hábitos e agir sem pensar, seguindo esses hábitos, o que cria uma segunda natureza, mais arraigada, por assim dizer, do que a natureza original. Esses hábitos dificultam a avaliação que o indivíduo faz de si mesmo e de sua própria identidade, e ainda mais a avaliação do que ele deve pensar sobre os outros com quem se relaciona. Em outras palavras, a questão fundamental aqui é saber, por exemplo, se somos corteses porque nos acostumamos a ser assim, ou se nos habituamos tanto a ser corteses com os outros que acabamos nos tornando pessoas corteses. Quem realmente somos nós? Nós agimos dessa maneira porque somos assim, ou, ao contrário, nos tornamos assim porque agimos habitualmente dessa maneira?

    Em resumo, a teoria moral de Kant procura estabelecer um fundamento racional para a moralidade, um fundamento que não se mistura com elementos empíricos ou sensíveis, mas que, no entanto, requer o conhecimento sensível da natureza humana fornecido pela antropologia pragmática. Ao examinar o que o ser humano faz ou é capaz de fazer enquanto age livremente, ignorar o aspecto antropológico é o primeiro passo para a inviabilidade de qualquer teoria ética que pretenda ser levada a sério. Muitos estudiosos da filosofia prática de Kant concentraram-se mais na fundamentação da moralidade e em seus conceitos associados do que no estudo das condições subjetivas humanas que tornam a ação moral possível. Em outras palavras, tornou-se comum apresentar a teoria moral kantiana como baseada na autonomia de todo ser racional, ou seja, na capacidade dos seres racionais de se autodeterminarem e seguirem sua própria lei, deixando de lado influências externas como as paixões e afetos ligados à sensibilidade. No entanto, a autonomia moral não é inata ao ser humano; não basta estar ciente dela para que ela surja automaticamente, apesar de algumas pessoas acreditarem e viverem essa ilusão ou esse ideal. A autonomia moral é uma conquista individual que precisa ser desenvolvida e ampliada para a coletividade, e só surge após superar os obstáculos, dominando as inclinações e paixões.

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