Se consideram os escritos de Nietzsche como monstruosos hoje, é devido à escolha de ignorar as distorções, reacendendo a visão superficial que o retrata como profeta do nacional-socialismo.
Nietzsche e sua irmã Elizabeth Forster Nietzsche. Foto | Reprodução Wikipedia |
Ao esquivar-se de confrontar
seu pensamento, aqueles que evitam examinar os efeitos políticos desastrosos
atribuídos a Nietzsche são confrontados com a realidade de que, por caminhos
diversos e em várias regiões, sua influência antecedeu a materialização de sua
obra. Suas ideias se disseminaram antes mesmo da tradução de seus livros. No
início do século XX, na Europa, muitos o reconheciam como um pensador
notavelmente revolucionário, enquanto na Espanha alguns o percebiam como um
intelectual anarquista. Contudo, algumas décadas mais tarde, ele foi assimilado
como um dos fundamentos do nazismo na Alemanha e apropriado como um pensador de
orientação direitista na França.
Autor Nacionalista?
Com o intuito de
instrumentalizar seu nome e obra, no Terceiro Reich, Nietzsche foi associado
aos movimentos nacionalistas, sendo essa distorção uma das mais surpreendentes.
No século XIX, a Alemanha passou por transformações profundas, desde a
implantação tardia da indústria até a transição de uma sociedade particularista
e patriarcal para uma nação capitalista e industrializada. A Prússia liderou o
processo de unificação dos trinta e nove Estados alemães, provocando uma guerra
que levou à formação do Segundo Reich em 1871.
Paralelamente às
significativas transformações econômicas e sociopolíticas, ocorrem mudanças
igualmente importantes no âmbito da cultura e da educação. Após a conclusão do
processo de unificação, a Prússia, buscando manter a coesão dos diversos
estados ao seu redor, empenha-se na padronização da cultura e do ensino para
eliminar diferenças regionais, consolidando assim a transição do cosmopolitismo
para o nacionalismo. Nietzsche, como uma voz discordante na celebração
nacional, desafia a euforia reinante e critica vigorosamente o nacionalismo
alemão, recusando-se a permitir interpretações simplistas de sua filosofia.
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Filósofo antissemita?
Ao tentar alinhar o
pensamento de Nietzsche às políticas culturais do Terceiro Reich, distorceram
sua figura ao retratá-lo como defensor da raça ariana. O século XIX na Europa
foi marcado pelo desenvolvimento das teorias raciais, sendo Gobineau, genro de
Wagner, um exemplo paradigmático. Em 1853 e 1855, Gobineau publicou um ensaio
sobre a desigualdade das raças humanas. Além disso, ele contribuiu para as
Folhas de Bayreuth, uma revista fundada em 1878 que circulava entre os
wagnerianos, servindo como veículo para um programa de pangermanismo místico
que mesclava ideias raciais com a doutrina cristã.
Em 1878, Nietzsche recebe o
libreto final de Parsifal. Ele observa uma mudança significativa, enquanto na
tetralogia testemunhou o colapso de costumes, leis e até do Estado, agora o
drama é impregnado por ideias cristãs, nacionalistas e antissemitas. A carta
que Wagner enviou acompanhando o libreto ficou sem resposta, marcando o
distanciamento entre eles. Nietzsche se afasta de sua irmã e cunhado, não
tolerando afirmações como a superioridade dos arianos. Sua oposição ativa às
ideias antissemitas é evidente, e seus contemporâneos antissemitas reconhecem
isso. Tentativas de retratar Nietzsche como antissemita, seja vulgares ou
respeitáveis, mostram-se fracas e inconsistentes diante da aversão dele à
teoria racial que fundamentou as concepções hitlerianas.
Hitler e Elizabeth Forster Nietzsche. Foto | Reprodução Elenchus Philosophy |
Apologia à Guerra e à Força Bruta
Ao tentarem apropriar-se do
pensamento de Nietzsche, interpretaram erroneamente que ele se posicionava como
um militarista que incessantemente elogiava a guerra. A justificativa para essa
visão era sua concepção da vontade de potência, entendida como o anseio pela
dominação que supostamente autorizaria o uso da força bruta em todas as
circunstâncias. A controvérsia em torno da concepção nietzschiana de vontade de
potência, sujeita a diversas interpretações, não se deve apenas aos
pressupostos das diferentes leituras, mas também a uma dificuldade técnica.
Essa concepção é encontrada principalmente nos fragmentos póstumos redigidos
por Nietzsche entre o verão de 1882 e os primeiros dias de 1889, sendo que
somente a partir da década de 1970 essas anotações começaram a ser publicadas
na íntegra.
No Brasil, as divergências na
compreensão da vontade de potência refletem-se nas diferentes formas de
tradução da expressão Wille Zur Macht. A escolha de traduzi-la como
"vontade de poder", como alguns preferem, pode potencialmente levar o
leitor a interpretações equivocadas. Isso porque essa tradução pode sugerir uma
interpretação restrita do termo "poder" no sentido político, o que
contribuiria para distanciar as apropriações nazistas do pensamento de
Nietzsche. No livro "Em seu Estado, em seu Estilo: A Doutrina da Vontade
de Potência em Nietzsche," Wolfgang Müller-Lauter explora as ideias do
filósofo, desvendando a trama de seus conceitos. Ao analisar a vontade de
potência, concepção considerada central por muitos comentadores, ele reconstrói
de forma clara e vigorosa o pensamento de Nietzsche, destacando a profundidade
de sua reflexão e ressaltando a disparidade entre sua concepção e a
interpretação feita pelos ideólogos nazistas.
Dúvidas Sobre Essas Quatro Convicções
Desde os primeiros tempos, o
autor de "Assim Falava Zaratustra" foi alvo de interpretações
ideológicas, com sua irmã Elizabeth desempenhando um papel significativo nesse
aspecto. Ela sempre teve influência em sua vida, aproveitando-se de seus contatos
para integrar-se na sociedade da época, mesmo contra a vontade dele. Elizabeth
desempenhou um papel crucial em sua relação com Lou Salomé, tornando-se uma
oponente declarada da jovem russa e tentando expulsá-la da Alemanha. Em maio de
1885, casou-se com Bernhard Föster, conhecido por suas visões antissemitas, e
ambos partiram para o Paraguai com a intenção de fundar uma colônia ariana.
Elizabeth instigou Nietzsche a juntar-se a eles, investindo suas escassas
economias no empreendimento. Em uma carta de meados de fevereiro de 1886,
Nietzsche comenta a Emily Finn que, no final das contas, a perda de sua irmã
parece ser mais marcante do que o próprio Paraguai. A colônia não prosperou, e
o empreendedor acabou por se suicidar.
A viúva Forster retornou à
Alemanha endividada, encontrando Nietzsche sob a tutela de sua mãe.
Surpreendeu-se com a crescente demanda por seus livros e, por meios legais,
obteve a custódia de todas as suas obras. Em 1901, publicou uma obra intitulada
"Vontade de Potência," compilando 483 fragmentos póstumos deixados
pelo filósofo entre o outono de 1887 e os primeiros dias de 1889. A seleção foi
feita meticulosamente entre as notas caóticas escritas ao longo de meses, sem
seguir uma ordem cronológica. Com a colaboração de Heinrich Kösselitz, ela
apresentou essa compilação como a "obra filosófica capital de
Nietzsche."
Para validar seu
empreendimento, Elisabeth Fórster recorreu à falsificação de cartas,
principalmente as dirigidas à amiga Malwida von Meysenbug, por Nietzsche. Ela
obteve os originais, elaborou um texto a partir deles e posteriormente os
destruiu. Ao se apresentar como a destinatária dessas correspondências, buscava
estabelecer uma imagem de credibilidade junto aos editores e amigos do
filósofo. Pretendia criar a impressão de que compreendia as intenções de
Nietzsche melhor do que qualquer outra pessoa.
Demonstrando um espírito
empreendedor, Elizabeth dedicou-se a promover o nome de Nietzsche através da
imprensa. Entre 1993 e 1900, elevou-o ao status de ídolo em diversas revistas,
supervisionou novas edições de seus livros, incentivou publicações acessíveis,
leiloou manuscritos de conferências sobre o futuro da educação, vendendo-os a
um jornal popular em dezembro de 1893. Autorizou a publicação de "O
Anticristo" em setembro de 1895, organizou uma antologia de poemas lançada
antes do Natal de 1897 com recursos provenientes dos direitos autorais,
adquiriu uma propriedade em Weimar e estabeleceu os Arquivos Nietzsche,
recebendo personalidades do mundo cultural e político. Posteriormente, permitiu
e encorajou o uso da filosofia nietzschiana pelo Terceiro Reich, sendo
sepultada com honras nacionais em 1935.
Nietzsche e Elizabeth Forster Nietzsche. Foto | Reprodução
Elisabeth Forster Nietzsche
redigiu ensaios, artigos e uma biografia em três volumes sobre o filósofo. Para
a primeira edição de "Vontade de Potência," escreveu uma extensa
introdução na qual afirmava que o livro representava a obra principal de seu
irmão em prosa. Infelizmente, a obra não foi concluída ou, talvez, tenha sido,
mas o manuscrito foi perdido durante a crise em Turim. Em 1906, publicou a
segunda edição, reunindo 1.067 fragmentos póstumos, mais uma vez sem seguir a
ordem cronológica ou explicar os critérios de seleção. Nos manuscritos de
Nietzsche, a intenção de escrever um livro chamado "Vontade de
Potência" surge por volta de agosto de 1885, como um título entre vários
projetos. No verão do ano seguinte, um plano de trabalho intitulado
"Vontade de Potência" com o subtítulo "Ensaio de uma
Transvaloração de Todos os Valores" manteve-se até 26 de agosto de 1888. A
partir desse ponto, o título "Vontade de Potência" desaparece, sendo
substituído pela "Transvaloração de Todos os Valores."
Indagada sobre diversos
aspectos, a obra publicada por Elisabeth Forster Nietzsche como "Vontade
de Potência" serviu como ferramenta de estudo para acadêmicos até a década
de 1950. No entanto, após a Segunda Grande Guerra, Karl Schlechta denunciou os
métodos de Elisabeth e desacreditou o livro que ela concebeu. Baseando-se em
pesquisas nos arquivos de Nietzsche em Weimar, Schlechta constatou a
inexistência de "Vontade de Potência". Ele revelou que, na verdade,
só existiam papéis póstumos. Embora tenha conduzido uma edição em três volumes,
ele optou por não publicar na íntegra os escritos do filósofo, limitando-se a
divulgar um número reduzido de inéditos e, junto com alguns outros textos,
incluiu os fragmentos póstumos da edição de 1906 de "Vontade de
Potência". Apesar de seus esforços para estabelecer uma ordem cronológica,
Schlechta enfrentou dificuldades significativas, pois não teve acesso aos
manuscritos originais. A grande contribuição da edição organizada por Schlechta
foi desmascarar a ideia de que "Vontade de Potência" seria a obra
filosófica central de Nietzsche, embora esse não fosse o objetivo inicial do
editor. No final das contas, essa edição reforçou a imagem do filósofo, a qual
o próprio livro divulgado por Elisabeth promoveu.
Finalmente, foi lançada a
edição crítica das obras completas de Nietzsche, organizada por Giorgio Colli e
Mazzino Montinari, resultado de um trabalho abrangente desenvolvido ao longo de
vários anos com extrema atenção e rigor. Müller-Lauter desempenhou um papel
decisivo, sendo essencial para a pesquisa internacional sobre a obra do
filósofo. Essa edição crítica acumula méritos indiscutíveis ao disponibilizar a
totalidade de seus escritos para estudiosos, buscar restaurar os textos
conforme os manuscritos originais em ordem cronológica, eliminar deformações e
falsificações presentes nas edições anteriores, incluir anotações inéditas e
correspondência, além de apresentar um vasto aparato histórico filosófico de
inestimável valor. No entanto, antes de sua publicação, edições anteriores
geraram sérios equívocos.
A publicação intitulada
"Vontade de Potência," feita por Elisabeth Forster Nietzsche,
desempenhou um papel significativo ao associar o filósofo ao nazismo. Tanto é
assim que alguns pensadores franceses, na década de 1990, apresentaram o livro
chamado "Por que não somos Nietzschiano?" buscando dissociar-se de
Nietzsche por meio de uma acerto de contas com os Nietzschianos franceses. Luc
Ferry, Alain Renault, André Comte-Sponville, entre outros, dirigiram contra
seus mentores - Foucault, Deleuze, Derrida, e outros - as armas que aprenderam
a manejar.
Isso destaca alguns dos
equívocos na apropriação ideológica ao reivindicarem a antiga exigência de
racionalidade. Os autores de "Por que não somos Nietzschianos?"
procuraram reconsiderar Nietzsche em oposição ao Nietzschianismo,
particularmente contra a utilização específica das ideias do filósofo. A
intenção de pensar com Nietzsche deveria implicar levar a sério suas
declarações, mas, paradoxalmente, a busca declarada não impediu que recortes
arbitrários nos textos fossem feitos, apoiando-se em citações da "Vontade
de Potência," sem considerar que este livro foi uma invenção da irmã do
filósofo. Ao combater o que consideravam uma apropriação ideológica, a de
retratar Nietzsche como o mestre da suspeita, conforme feito por Foucault,
Deleuze e Derrida, eles acabaram substituindo essa imagem do filósofo por
outra, reintroduzindo antigas representações, como a de Nietzsche racista e
antissemita, ou, no melhor dos casos, a de Nietzsche comprometido com o
pensamento tradicional.
Apresentando uma lacuna de
reflexão filosófica, a obra listava estados psicológicos e relatos
autobiográficos, mas além da aparência de catarse, tinha um propósito político
claro: demarcar território e conquistar espaço no cenário intelectual francês.
Para alcançar esse objetivo, nada mais eficaz do que gerar polêmica. Embora a
obra compartilhasse características de um panfleto, seu principal defeito era a
aversão declarada a Nietzsche. No Brasil, em 2008, foi lançado com o título
"Vontade de Poder," o livro inventado por Elisabeth Foch e Nietzsche,
um fato lamentável sem justificativa, exceto pela irresponsabilidade de uma
editora que buscava se impor no mercado. Já nos anos 1980, em um artigo chamado
"Interpretações Nazistas," Mazzino Montinari destacou o uso
tendencioso dos fragmentos póstumos do filósofo. Ele argumentou que no Terceiro
Reich não havia consenso sobre Nietzsche. Entre os ideólogos do
nacional-socialismo, alguns tentavam incorporá-lo à sua visão de mundo,
enquanto outros rejeitavam suas concepções cosmopolitas. Alguns ainda buscavam
uma posição intermediária entre essas duas visões.
Transformar Nietzsche em um
defensor do nacionalismo e um pensador antissemita, vincular a concepção de
vontade de potência a um anseio por dominação política, e associar a ideia de
"além do homem" à superioridade da raça ariana foram estratégias-chave
adotadas pelos ideólogos do nazismo. Eles buscavam instrumentalizar a filosofia
nietzscheana para fortalecer, justificar e legitimar o projeto hitleriano. Um
exemplo é "Assim Falava Zaratustra," escrito entre 1873 e 1875, que
enfrentou sérias dificuldades para ser publicado. A primeira parte aguardou
meses até o lançamento, já que o editor priorizava cânticos religiosos e
brochuras antissemitas. As partes dois e três foram publicadas juntas após
muita insistência, enquanto a quarta foi recusada categoricamente pela editora,
sendo impressa em uma tiragem de 40 exemplares custeada pelo autor, o que era
mais que suficiente, considerando que ele planejava enviá-la a menos de 10
pessoas.
Em "Assim Falava
Zaratustra," Nietzsche introduz, pela primeira vez em sua obra publicada,
a concepção de vontade de potência. Neste ponto, ele a associa à vida,
considerando-a como uma vontade orgânica. Essa vontade não é exclusiva dos
seres humanos, mas abrange todos os seres vivos, manifestando-se nos órgãos,
tecidos e células, incluindo os organismos microscópicos que compõem o
organismo. Ao atuar em cada componente, encontra resistências no ambiente, mas
tenta subjugar aqueles que se opõem, colocando-os a seu serviço. A manifestação
da vontade de potência resulta em colisões entre células que resistem a ela,
transformando o obstáculo em estímulo. Por meio dessa luta, uma célula passa a
obedecer a outra mais forte, um tecido submete-se a outro que prevalece, e uma
parte do organismo torna-se função de outra que sai vitoriosa. Embora a luta
não alcance um fim definitivo, ela estabelece hierarquias temporárias.
Ao longo de séculos, a
humanidade, fragmentada, concebeu-se como uma composição de corpo e alma.
Agora, desvinculado da definição em relação à divindade, deixa de existir. O
auge da humanidade, seu meio-dia, ocorre ao suprimir o dualismo de mundos; um
indivíduo que se transcende identifica-se com o mundo existente, este presente
aqui e agora. Zaratustra proclama à multidão na praça do mercado que o ser
humano é algo a ser superado, e o Além do Homem é o sentido da terra. Não se
trata de uma superioridade biológica ou de uma nova espécie proveniente da
seleção natural, mas daquele que organiza o caos de suas paixões e integra cada
traço de seu caráter em uma totalidade, reconhecendo que seu ser está
entrelaçado com o cosmos. A afirmação dele abrange tudo o que é, foi e será. Ao
contrário do que acreditaram os ideólogos do Terceiro Reich e aqueles que, de
alguma forma, seguem seus passos, Nietzsche tem uma empreitada filosófica
distinta que não se confunde com projetos políticos de qualquer natureza. Se
nos dias de hoje ainda há quem o veja como precursor do nazismo, é devido à
ignorância ou má fé.
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