A preocupação atual de muitos setores do ensino, especialmente aqueles ligados à área das ciências humanas, é chamar a atenção dos estudantes para a história dos que são rotulados de ausentes, marginais e até mesmo irracionais pela visão dominante.
Riacho que atravessa a favela Vietnã, sul de São Paulo, passa por desinfecção em 9 de julho de 2020 (Andre Lucas / picture alliance/Getty Images) |
Educação- Quando os estudantes
iniciam sua jornada na universidade e se deparam com disciplinas introdutórias
das ciências sociais, muitas vezes se sentem desorientados. Esse sentimento é
ampliado quando os temas abordam aspectos da sociedade brasileira. Embora estejam
motivados a compreender a realidade em que vivem, muitos têm dúvidas sobre o
que encontrarão pela frente. Isso ocorre porque desde cedo foram ensinados que
as informações superficiais e decorativas são apenas para fins de adorno ou
para melhorar o currículo acadêmico.
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As
reclamações, especialmente contra os estudos sociais, são recorrentes ano após
ano. A necessidade de memorizar nomes de figuras proeminentes, datas, eventos e
lugares desde o ensino fundamental é uma fonte constante de insatisfação. No
entanto, os alunos reconhecem a importância do estudo da história para o
desenvolvimento de qualquer conhecimento nas ciências sociais. No entanto, eles
se acostumaram a aprender sobre a sociedade brasileira através dos feitos de
heróis da classe dominante, que parecem desfilar na memória dos estudantes como
imagens de um álbum desconexo, sem conexão aparente entre si. Os eventos
políticos, como a independência, a abolição, a república, e assim por diante,
são apresentados como uma série de feitos isolados para facilitar a
compreensão.
Os
processos econômicos também são simplificados. Eles são descritos apenas como
avanços técnicos e uma progressão natural dos mecanismos econômicos, criando
uma imagem universal da sociedade capitalista. Essa abordagem não considera o
contexto histórico específico e parece distante da realidade cotidiana de cada
indivíduo. Esse tipo de ensino transforma os estudantes em meros espectadores,
como assistentes de eventos históricos que ocorrem além de sua influência e
compreensão. Essa abordagem pedagógica busca permanentemente desvalorizar
politicamente qualquer estudante ou cidadão que opte por não permanecer como um
mero observador passivo da história presente ou futura.
Justiça determinou a desocupação da Favela Vietnã, na Zona Sul, porque considerou que as casas estavam construídas sobre área de risco com a proximidade da época de chuvas (Foto: Raphael Prado/G1) |
Na
universidade, essa sensação de impotência e exclusão política pode gerar
conflitos, já que muitos esperam que o desenvolvimento de aspectos cruciais da
vida social, como o pensamento crítico e o conhecimento científico, ocorra
dentro dos limites do ensino tradicional. Como mencionado, a tendência no
ensino fundamental e médio é reforçar uma visão elitista do mundo, onde o
progresso da sociedade é visto como dependente da liderança e controle de
poucos indivíduos destacados. No ensino superior, a preocupação com matérias
superficiais pode ressurgir. O perigo reside na sobrevalorização do ensino
teórico em detrimento de uma compreensão alternativa e crítica da sociedade em
que vivemos. A fixação de conceitos e teorias é feita de forma isolada, sem
considerar o contexto social e político em que esses conhecimentos foram
desenvolvidos. Essa abordagem acadêmica perpetua a mesma filosofia de ensino
anterior, delegando a especialistas a responsabilidade de analisar e propor
mudanças em todos os níveis da sociedade, inclusive no campo científico. Ao
questionarmos essa visão predominante experimentada pelos estudantes desde o
ensino fundamental, nossa intenção é instigar a reflexão sobre o Brasil como
uma sociedade estratificada, tanto no passado quanto no presente e no futuro.
Para isso, faremos algumas considerações sobre o conceito de classes sociais.
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Destacamos que, apenas para simplificar a exposição,
faremos uso abstrato dos conceitos de classe dominante e classe dominada. Na
realidade, essas categorias não existem de forma tão clara em nenhuma sociedade
estratificada. Estamos adotando uma representação simplificada para iniciar uma
discussão sobre o conceito de classes sociais, semelhante ao que ocorre em
análises históricas. É importante notar que há um debate em andamento e não um
consenso absoluto sobre o assunto. Mesmo assim, tentaremos delinear pelo menos
duas perspectivas relevantes a respeito.
Há autores que abordam o conceito de classes sociais a
partir da perspectiva da estratificação social. Isso implica que existem tantas
classes quanto forem necessárias para classificar os indivíduos de uma
sociedade ou grupo social. Ao considerarem fatores como renda, status, nível
educacional, religião, etnia ou ocupação dos indivíduos, estão identificando
diferentes estratos sociais, que muitas vezes se sobrepõem à ideia de camadas,
grupos ou segmentos sociais. Por exemplo, alguém pode pertencer a uma classe
mais alta em termos de educação, mas estar em uma classe inferior devido ao seu
nível de renda. Por outro lado, um vendedor ambulante pode ser considerado
parte de uma classe social mais baixa em termos de prestígio profissional, mas
ser incluído em uma classe mais alta devido ao seu padrão de consumo.
As classes ou grupos resultantes dessa concepção de
sociedade são vistas mais como uma hierarquia e uma soma de indivíduos
isolados, que podem ser organizados e reorganizados de acordo com os interesses
que guiam essas análises e pesquisas. Nessa abordagem, a compreensão da
realidade é fragmentada e limitada por aspectos predominantemente
quantitativos, concentrando-se em objetivos mais imediatos, como mensurar
padrões de consumo e a dinâmica de determinadas relações de mercado ou
comportamentos sociais. Por outro lado, alguns autores defendem um conceito
baseado na natureza histórica da estrutura social. Isso significa que as
classes sociais não são fixas e não podem ser criadas apenas por pensamento
abstrato. Cada período histórico possui uma estrutura social específica.
Portanto, as classes sociais não existem por definição, mas apenas quando se
manifestam na realidade concreta. Assim, só podemos compreender o conceito se
nos envolvermos com o estudo da história real, onde ocorre o confronto entre as
classes dominantes e dominadas.
Gráfico mostra a distribuição de renda mensal das famílias. (Fonte: Datafolha) |
É importante reconhecer a presença de grupos, estratos ou
segmentos sociais com diferentes influências e condições político-econômicas
dentro tanto da classe dominante quanto da classe dominada. Essa perspectiva,
longe de complicar, facilita a análise da formação e das características da
estrutura social brasileira, além de destacar as principais contradições
sociais que marcam de maneira singular cada período histórico do país,
rejeitando a ideia de uma sociedade linear e predestinada em seu desenvolvimento.
Em suma, as contradições sociais refletem os objetivos políticos mais amplos
tanto da classe dominante quanto da dominada. O objetivo da primeira é manter e
garantir sua posição de poder e exploração, enquanto o da segunda é acabar com
a desigualdade social e a submissão à qual está sujeita.
É relevante observar que, mesmo diante de uma estrutura de
classes complexa e diversificada, a contradição entre aqueles que controlam o
capital e aqueles que possuem apenas sua força de trabalho não é dissolvida ou
diluída. Embora muitas outras contradições possam surgir entre os grupos dentro
de uma mesma classe social, isso não implica necessariamente que elas adquiram
um poder político suficiente para suplantar a contradição principal, mesmo
quando provocam rupturas na ordem estabelecida, como ocorreu na Revolução de 30
ou no Golpe de 64. Quanto à chamada "classe média", é importante
notar que ela tende a oscilar entre diferentes projetos de classe. Em alguns
casos, certos segmentos se alinham mais diretamente com os interesses da classe
dominante, enquanto outros se identificam mais com os da classe dominada.
Existem também aqueles que acreditam na capacidade da classe média de formular
seu próprio projeto de sociedade. Surge, então, a possibilidade de sua
autoafirmação política como uma terceira força social, independente das
dinâmicas de poder estabelecidas entre as classes antagônicas.
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A preocupação atual de muitos setores educacionais,
especialmente aqueles ligados às ciências humanas, é sensibilizar os estudantes
para a história dos marginalizados, rotulados como ausentes ou até mesmo
irracionais pela visão predominante. Para alcançar esse objetivo, é necessário
explorar o Brasil de uma forma diferente. O estudo da história social do
trabalho desempenha um papel crucial ao nos ajudar a entender como e por que
grupos como índios, negros e trabalhadores rurais e urbanos têm resistido e se
oposto, de maneira pacífica ou armada, às diversas formas de exploração ao
longo do desenvolvimento do capitalismo no país. Vale ressaltar que a classe
dominada, os derrotados, nunca teve condições políticas, econômicas e culturais
favoráveis para difundir sua versão dos eventos sociais para toda a sociedade.
Portanto, a universidade tem uma grande responsabilidade em fornecer aos
estudantes interpretações históricas críticas e diversas que evidenciem o
caráter de classe de nossa sociedade, destacando seus movimentos de ruptura,
progresso e retrocesso. Em última análise, trata-se de defender e recuperar uma
dimensão indispensável da realidade para enriquecer e revitalizar as discussões
teóricas e conceituais nas disciplinas das ciências sociais. Ignorar esse
problema significa impedir uma integração que deve ser continuamente buscada
entre a vida acadêmica e a realidade, entre teoria e prática, discurso e a
necessidade concreta de abordar as questões sociais.
Bibliografia
CABRINI, Conceição et aliou. O ensino de história: Revisão
urgente. São Paulo: Brasiliense, 1986.
FENELOS, Déa Ribeiro (org.). " Sociedade e trabalho na
história". Revista Brasileira de História n°11, vol. 6, set. 1985/fev.
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