Dois bilhões de pessoas sustentam a crença de que a Bíblia narra a narrativa da criação divina de todo o universo. Neste momento, arqueólogos, historiadores e teólogos estão explorando os bastidores da origem da Bíblia.
A sangrenta história das traduções da Bíblia. Fonte: BBC |
Política- No início, Deus deu origem ao céu e à
terra. Esta breve, simples e direta afirmação, situada no início da Bíblia,
exerce um impacto avassalador. Representando o conjunto de textos mais
reconhecido globalmente, é praticamente inimaginável conceber o Ocidente sem
essas narrativas. Equiparar isso seria semelhante a visualizar um mundo
desprovido da sonata de Bach, dos oratórios de Handel, dos afrescos de Giotto,
das esculturas de Michelangelo, dos quadros de Leonardo da Vinci e das
majestosas catedrais góticas. Vale ressaltar que grande parte dessas obras
encontra inspiração nos textos bíblicos. A própria concepção divina da criação,
tal como a conhecemos, não teria existência. Da mesma forma, o sentimento de
pecado original e culpa, que permeia os consultórios de psicanálise, seria
desconhecido.
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Entretanto, mesmo sendo a
versão bíblica da criação reconhecida por seguidores de outras tradições
sagradas, como budistas, hinduístas e muçulmanos, no caso dos adeptos do Islã,
esses textos foram atualizados e superados pelo Alcorão. Poucos questionam, afinal,
como a própria Bíblia teve origem. Por muito tempo, a maioria dos cristãos, que
atualmente ultrapassam 2,18 bilhões, aceitava uma resposta simplista para essa
indagação: a Bíblia foi escrita por líderes religiosos diretamente inspirados
por Deus, ponto final. Mesmo hoje, persiste uma visão ingênua de que ela quase
que milagrosamente se originou do divino. O historiador André Chevitarese,
professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e precursor nos estudos
sobre Jesus histórico no Brasil, destacou esse ponto.
Após extensas décadas de
pesquisa, especialistas têm desvendado o processo de escrita e edição dos
textos sagrados da Bíblia, transformando-os no livro mais influente do planeta.
Identificar o autor de um livro é algo simples nos dias de hoje, pois geralmente
o nome está destacado na capa. No entanto, quando se trata da Bíblia, a
situação é consideravelmente mais complexa. Por muito tempo, a tradição
afirmava que os textos bíblicos eram obra de autores claramente identificáveis.
A tradição cristã e judaica, por exemplo, frequentemente atribuía a autoria do
Pentateuco, os cinco primeiros livros da Bíblia, a Moisés. Da mesma forma, o
rei Davi seria creditado como autor da maioria dos Salmos, enquanto Samuel
seria associado a Juízes. No entanto, estudiosos modernos reconhecem que,
durante o período de criação desses textos, a noção de autoria sequer existia.
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Para leitores habituados à
concepção moderna de autoria, essa ideia pode parecer estranha atualmente, como
aponta o pesquisador John William Rogerson em seu livro "An Introduction
to the Bible" (traduzido como "O Livro de Ouro da Bíblia" no
Brasil). No entanto, comprovar que a Bíblia foi escrita dessa maneira
apresentava desafios. Por muito tempo, a análise dos próprios textos era a
resposta, conforme destacam os especialistas. Até um leitor comum poderia
identificar, por exemplo, na narrativa do Dilúvio no capítulo 6 do Gênesis, a
presença de trechos praticamente idênticos com poucas linhas de distância,
evidenciando essa autoria coletiva, como nos dois exemplos abaixo:
1. "E Iahweh (Deus)
viu que a maldade do homem era grande sobre a terra e que era continuamente mal
todo o desígnio de seu coração."
2. "Deus viu a terra,
estava pervertida, porque toda a carne tinha uma conduta perversa sobre a
terra."
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A repetição mencionada
anteriormente não seria, como especulou-se anteriormente, um recurso literário
para enfatizar o conteúdo do texto, mas sim a combinação de duas narrativas
distintas sobre o mesmo tema. Assim como um editor de jornal pode compor um artigo
com base em reportagens de vários jornalistas, até meados do século passado,
conclusões desse tipo só poderiam ser derivadas de textos relativamente
recentes. Contudo, desde então, uma série de descobertas arqueológicas
transformou a pesquisa sobre as origens da Bíblia, proporcionando aos
historiadores acesso a pergaminhos com mais de dois mil anos, em uma época em
que não existia o chamado Novo Testamento.
Imagine retornar ao
passado e ler os textos sagrados que existiam na antiga Palestina antes ou
durante a vida de Jesus. Isso ocorreu em 1946, quando, ao procurar uma cabra
perdida perto do Mar Morto, o pastor Mohamed Adib, por acaso, encontrou jarras
de cerâmica contendo escrituras sagradas em pergaminhos e papiros, datadas do
século III a.C. até o ano 68. Esses manuscritos, conhecidos como Manuscritos do
Mar Morto, representam uma das descobertas mais significativas da arqueologia
bíblica moderna, totalizando 15 mil fragmentos de texto, principalmente em
hebraico, a língua das primeiras narrativas bíblicas. Posteriormente, os
estudiosos descobriram que as grutas serviam como uma espécie de biblioteca.
Quando começaram a ser traduzidos, os pergaminhos provocaram uma revolução na
pesquisa dos primórdios da Bíblia, revelando a diversidade de textos entre as
várias correntes religiosas dentro do judaísmo naquele período.
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Dentre esses registros,
incluía-se uma narrativa apocalíptica sobre uma guerra entre os Filhos da Luz e
os Filhos da Escuridão, juntamente com um manual de disciplina. Esses textos
foram associados pelos pesquisadores aos Essênios, uma seita judaica radical
cujos adeptos viviam afastados do judaísmo oficial no Templo de Jerusalém. Eles
seguiam regras que incluíam a renúncia total de bens materiais e prazeres
carnais, adotando um estilo de vida peculiar. Alguns estudiosos sugerem que
João Batista e até mesmo Jesus podem ter tido contato com os Essênios.
Independentemente da polêmica, a descoberta desses pergaminhos levou os
pesquisadores a concluir que não existia apenas uma coleção de textos sagrados.
De acordo com a orientação religiosa de cada grupo judaico da época, outros
textos poderiam ser copiados em rolos de pergaminho.
Alguns desses manuscritos,
no entanto, apresentam versões semelhantes ao que conhecemos hoje, como é o
caso dos trechos do Pentateuco. Esses cinco livros, que formam a abertura do
Antigo Testamento para os cristãos e a Torá (Lei) para os judeus, são compostos
por Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Esses textos constituíam
a base de bibliotecas judaicas, e apesar das alterações ao longo do tempo, a
essência das narrativas foi preservada após a queda dos reinos de Israel e Judá
entre os séculos VIII e VI a.C., quando muitos judeus foram exilados. Nesse
contexto, surgiram as primeiras traduções dos textos bíblicos para outras
línguas, permitindo que narrativas como as do Gênesis ultrapassassem as
fronteiras da Palestina e alcançassem o mundo.
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Uma das traduções mais
renomadas ocorreu aproximadamente no século III a.C. para o grego, então o
idioma mais influente da época. Encomendada para a Biblioteca de Alexandria, um
centro cultural de grande importância, essa tradução foi supostamente realizada
por 72 tradutores judeus a serviço do governante egípcio Ptolomeu II. Conhecida
como Septuaginta ou LXX, uma referência ao número setenta em algarismo romano,
essa versão continua a ser a base da Bíblia utilizada pela Igreja Ortodoxa
Grega. A criação dessa versão da Bíblia hebraica em outro idioma provocou a
primeira grande controvérsia relacionada às traduções. O Talmud, compêndio de
tradições judaicas que reúne textos do período entre os séculos II e V,
descreve o evento como um dia tão doloroso quanto a construção do bezerro de
ouro, pois a Torá não poderia ser fielmente traduzida. Segundo a tradição
judaica, trevas cobriram a terra por três dias.
A primeira tradução
apresentava diferenças notáveis, começando pelos próprios nomes dos livros do
Pentateuco. Em hebraico, o primeiro era chamado de Bereshit, que significa
"no princípio". Na versão grega, esse nome foi alterado para Gênesis,
significando "origem". O segundo livro, originalmente chamado Shemôt
em hebraico, foi traduzido como Êxodos, ou "saída". O terceiro livro,
chamado Vaicrá em hebraico ou Sêfer Torat Cohanim (livro dos sacerdotes),
passou a ser conhecido como Levitikon, derivado de Levi. Bamidbar, que
significa "no deserto" e também é chamado de Humash Hapercudim (livro
dos censos), foi traduzido para o grego como Arithmoi, ou "números"
em português. Por fim, Divarim, que significa "palavras" em hebraico
ou Misné Torá (segunda Torá), foi traduzido para o grego como Deuteronomos,
onde Deutéros significa "segundo" e nomos significa "lei".
Após a pregação de Jesus,
seus seguidores enfrentaram a desafiadora questão sobre a validade dos antigos
escritos sagrados em comparação com a mensagem de Cristo. Os primeiros cristãos
adotaram uma resposta astuta: concordaram que as antigas escrituras mantinham
sua validade, representando uma aliança entre Deus e o povo hebreu.
Simultaneamente, afirmaram que a mensagem de Jesus estabeleceu um novo pacto,
pois Deus enviara seu Filho para ser crucificado, redimindo assim os pecados da
humanidade. Essa nova mensagem é a essência dos quatro evangelhos – livros
incluídos na Bíblia, formando o Novo Testamento. Embora os evangelhos de
Marcos, Lucas, Mateus e João sejam amplamente reconhecidos, poucos estão
familiarizados com obras como o evangelho de Tomé. Descoberto em 1945 na aldeia
de Nag Hammadi, no Egito, o evangelho de Tomé fascina estudiosos devido ao seu
formato único, caracterizado por uma ausência quase total de narrativa. Ao
contrário dos outros evangelhos, não há menção a eventos como a anunciação, a
infância, os milagres ou a ressurreição de Jesus. Em vez disso, é uma coleção
de 114 ditos atribuídos diretamente a Jesus, proporcionando a sensação de ouvir
palavras de um sábio sem interpolações. Entretanto, o evangelho de Tomé foi
excluído definitivamente.
O Evangelho de Tomé não
aborda o Jesus ressuscitado, um elemento fundamental para a ala mais influente
da igreja liderada por Paulo de Tarso, explicou o pesquisador André. A inclusão
ou exclusão nos cânones sempre foi, em última instância, uma questão de poder.
Na prática, o cânon representa uma lista oficial de livros reconhecidos como
inspirados divinamente e endossados por autoridades eclesiásticas. O manuscrito
integral mais antigo do Novo Testamento, encontrado em 1844 em um mosteiro no
Monte Sinai, datado do século IV e escrito em grego, evidencia que o cânon
estava praticamente fechado nessa época. Além disso, o manuscrito adota o
formato de códice, antecessor do livro moderno, indicando a preferência dos
cristãos pela nova tecnologia em detrimento dos antigos rolos de papiro ou
pergaminho. Os estudiosos apontam que o uso do códice ofereceu vantagens na
disseminação dos textos cristãos, tornando-os mais acessíveis em comparação aos
antigos rolos.
Martinho Lutero. Fonte: Terra |
Após a Reforma Protestante
em 1522, Martinho Lutero publica a renomada tradução do Novo Testamento para o
alemão, marcando a primeira vez que tal feito é realizado em uma língua
europeia moderna, a partir dos originais gregos e hebraicos. Em 1534, ele completa
a tradução da Bíblia inteira para o alemão, introduzindo uma seleção de textos
que, até hoje, diferencia as Bíblias dos católicos das dos protestantes. Ao
compor sua versão do Antigo Testamento, Lutero restringiu-se ao cânon da Bíblia
hebraica, excluindo os livros do Antigo Testamento reconhecidos pela Igreja
Católica como Deuterocanônicos. Essa designação decorre do reconhecimento
tardio desses livros, ocorrido após a canonização dos demais do Antigo
Testamento. Devido à ausência de uma versão hebraica desses textos, Lutero
optou por não incluí-los. Desde então, com o advento das técnicas de impressão
mecânica, a Bíblia foi traduzida para mais de 250 línguas. As primeiras versões
em língua portuguesa surgiram no século XVIII. Diante das inúmeras edições
modernas, os pesquisadores preferem referir-se às diferentes versões do livro
como Bíblias, no plural, em vez de Bíblia, no singular.
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