O titã mais sábio revelou-se também o mais
perspicaz. Moldou o ser humano a partir do barro, agraciou-o com as artes e as
ciências – uma ação que teve suas consequências.
O Mito de Prometeu: Reprodução Mbrothers |
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Qual é o nosso papel neste universo divino aparentemente destinado mais aos imortais do que aos seres humanos? Para abordar essas indagações, vou relatar a criação da humanidade por Prometeu, inspirando-me amplamente, mantendo fidelidade não apenas na forma, mas principalmente na essência. Ao explorar quatro textos fundamentais - Teogonia, posteriormente os Trabalhos e os Dias, de Hesíodo, poeta do século VII a.C., o Prometeu, de Ésquilo no século VI a.C., e o Protágoras, de Platão no século IV a.C. - as narrativas variam consideravelmente, especialmente as de Diezildo e Platão, sendo esta última a que explorarei inicialmente. Contudo, como veremos, todas elas são cativantes e apresentam um notável interesse filosófico.
O Mito de Prometeu segundo Platão
Tudo tem início no Olimpo, após a batalha
divina contra os titãs, Tifão e os gigantes. A atmosfera celestial finalmente
se estabiliza após Zeus delinear o mundo com equidade. Em um pequeno anfiteatro
divino, Zeus, acompanhado por uma assembleia de deuses, incluindo sua segunda
esposa, Têmis, se destaca. Ao seu lado, identificamos Hera, sua esposa, e
Atena, sua filha predileta, empunhando duas lanças, com a coruja simbolizando
sua perspicácia sobre o ombro, representando sua sagacidade na escuridão.
À distância, avistamos outros deuses: Ártemis,
a deusa da caça, irmã gêmea de Apolo, exibindo seu arco; Ares, vestido em
armadura imponente; Dionísio, o único mestiço do grupo, com traços quase
negros, olhos amendoados e uma expressão mestiça. Hefesto, o divino ferreiro
coxo, demonstra sua destreza inigualável. Poseidon empunha seu tridente, Apolo
dedilha sua lira feita de carapaça de tartaruga, presente de seu irmão Hermes,
que, com asas nos pés, entrega velozmente as mensagens do Senhor do Olimpo. Ao
lado de Zeus, encontramos Hermes e seus dois guarda-costas: Cratos, a força
musculosa e impassível, e Bia, a violência terrível. Zeus assume a palavra,
dirigindo-se a este pequeno cosmos divino, anunciando a vitória sobre os titãs,
agora confinados no Tártaro, atrás dos portões de bronze construídos por
Poseidon e guardados por Cérbero, proporcionando finalmente um sono pacífico.
Zeus, por um instante, interrompe o fluxo do
tempo para que as memórias do conflito assombroso se desvaneçam entre suas
ovelhas. Em seguida, prossegue, delineando a divisão do mundo entre os deuses.
Cada um recebe as honras merecidas: Gaia, a avó, permanece guardiã da terra;
Urano, do céu; Okéanos, raro titã aliado, torna-se pai dos rios. Hera assume o
papel de imperatriz, Atena é proclamada deusa das artes e da guerra. Para seus
irmãos, Poseidon é investido como senhor dos mares e agitador da terra, enquanto
Hades governa o subterrâneo infernal. Em resumo, cada divindade conquista suas
devidas honras, resultando em um mundo estável, pacífico e harmoniosamente
dividido. Zeus conclui, desejando que todos desfrutem, se divirtam e encontrem
felicidade.
Os deuses expressam sua aprovação,
parabenizando Zeus, e os observamos desfrutando da natureza, cada um retornando
ao seu lar. De fato, descansam e se divertem, desfrutando de manjares divinos -
néctar e ambrosia - em seus esplêndidos palácios, servidos por linfas
deslumbrantes. Engajam-se em música, amor, brincadeiras e até mesmo em debates
ocasionais. Em resumo, desfrutam de momentos agradáveis, assim como costumamos
fazer no período pós-guerra.
Gradualmente, percebendo que o tédio se
instala, eles começam a sentir o tempo se esticar, manifestando bocejos.
Alguns, como Ares, chegam a sentir saudades da guerra, pois pelo menos ela lhes
proporcionava ocupação e sentido à vida. Agora, questionam-se sobre o que fazer
em um mundo estável, onde nada mais está acontecendo, onde a história parece
ter cessado, e a vida perdeu seu movimento no universo. Zeus, que observa e
compreende tudo, reconhece a necessidade de encontrar uma ocupação para suas
divinas tropas. Após reflexão, surge uma ideia fabulosa em sua mente. Cheio de
entusiasmo, convoca novamente a Assembleia dos Deuses no anfiteatro, uma
espécie de palácio governamental. Ele lança a pergunta: "Não notam que o
mundo está excessivamente calmo ultimamente? A ausência de acontecimentos
tornou a vida monótona, não é mesmo?"
A aprovação entusiástica ressoa por toda a
Assembleia. "Bem, meus amigos, tive uma ideia brilhante. Vamos criar seres
mortais de todos os tipos. Podemos brincar com eles, observar suas vidas, nos
envolver em suas aventuras e até participar, se necessário. Assim, a vida e as
diversas intrigas retornarão ao universo, garantindo que nunca nos faltem
diversões ou assuntos para contemplação. O que você acha dessa ideia?"
Mais uma vez, uma aprovação retumbante enche o ar. Zeus, com um sorriso encantado,
deleita-se com o sucesso de seu engenhoso plano. "Decidi", declara o
Rei dos Deuses, "confiar esta tarefa ao meu primo Prometeu, filho do Titã
Jápeto, que também se juntou a nós na guerra. Todos vocês conhecem a
inteligência de Prometeu, em total contraste com a de seu irmão. Epimeteu, o
infeliz simplório. Tenho certeza de que ele executará essa tarefa
maravilhosamente.
Recordo que em grego, "pro-meteo"
significa aquele que compreende antecipadamente, adiantando-se aos outros, como
um mestre estrategista no xadrez. Por outro lado, "ep-meteo" é aquele
que compreende depois do ocorrido, carente de presença de espírito, sendo, por
assim dizer, o membro menos perspicaz da família. Em breve, veremos os
desastres que a estupidez de Epimeteu acarretará para a humanidade. Zeus então
se vira para Cratos e Bia. "Meus leais servidores, Cratos e Bia,
dirijam-se agora à casa de Japeto e encontrem Prometeu. Informem-lhe sobre o
que deve fazer com terra, água e fogo. Quero que ele crie arquétipos, modelos,
pequenas figuras e estatuetas representando todas as possíveis e imagináveis
espécies de seres mortais, humanos e animais, aos quais daremos vida."
Adentramos agora o domínio do Titã Jápeto, onde encontramos Epimeteu e Prometeu na mesma sala. Prometeu, com seus olhos vastos e profundos, se diverte resolvendo enigmas matemáticos, imerso em uma coleção de pergaminhos e instrumentos de geometria e astronomia, em profundo estado de meditação. Por outro lado, Epimeteu, com um sorriso despreocupado, entretém-se com uma criança de 5 anos jogando bolinha de gude. A irritação de Prometeu perante o barulho que impede sua reflexão é evidente. Cratos e Bia entram na sala, apresentando aos dois irmãos a ordem de Zeus para criar modelos arquitetônicos de todas as espécies mortais, utilizando terra, água, fogo, entre outros. Uma vez concluído, Zeus infundirá vida nas estatuetas concebidas. Epimeteu, imediatamente, implora a Prometeu para começar o trabalho. Prometeu, comprometendo-se ao máximo, jura que não comprometerá o projeto desta vez e pede uma chance. Ainda cético, Prometeu acaba cedendo, mas com a condição de que Epimeteu se abstenha de pensar nos humanos, começando primeiro com as espécies animais destituídas de razão. Epimeteu, radiante de gratidão, prontamente se põe a trabalhar.
Observando sua conduta, à primeira vista,
parece que Epimeteu não é tão tolo quanto se afirma. Ele trabalha com
dedicação, concentrado e competente na distribuição de dons e qualidades aos
diversos arquétipos, às várias espécies animais que concebeu. Sua criação
representa um pequeno cosmos em sua própria escala, um sistema equilibrado,
harmonioso e viável, que, nos dias de hoje, seria chamado de ecossistema
repleto de biodiversidade. Ele assegura que cada espécie animal tenha vantagens
específicas para a sobrevivência em relação às outras. Por exemplo, concede asas
a animais pequenos como pardais ou coelhos para escapar de predadores,
proporciona velocidade e habilidade para construir tocas a outros, e dá uma
carapaça à tartaruga de movimento lento. Em regiões frias, animais como focas e
ursos recebem uma pele espessa ou uma pelagem. Em ambientes como florestas ou
mares, alguns ganham garras para escalar árvores, nadadeiras para mergulhar,
entre outros. O resultado é um universo meticulosamente organizado que se
assemelha, minuciosamente, ao que os gregos chamam de cosmos.
Assim como é narrado pelo sofista Protágoras no
Diálogo de Platão que leva seu nome, principal fonte deste relato, Epimeteu
descreve seu trabalho. Sua distribuição consistia em proporcionar igualdade de
oportunidades em todos os aspectos imaginados por ele. Ele estava
cuidadosamente preocupado em evitar a extinção de qualquer raça,
fornecendo-lhes meios para escapar de diversas destruições. Para protegê-las
das variações de temperatura provenientes de Zeus, concebeu defesas
confortáveis. Algumas eram revestidas com uma espessa pelagem ou carapaças
robustas, adequadas para enfrentar tanto o frio quanto o calor intenso. Essas
coberturas também serviriam como leitos, adaptando-se a cada ser de maneira
natural. Epimeteu dotava diferentes raças com cascos, unhas ou garras sólidas,
desprovidas de sangue. Além disso, ele selecionava alimentos distintos para
cada raça: relva para algumas, frutos de árvores para outras, raízes para
algumas, e carne de outros animais para outras. Limitava a fertilidade das que
se alimentavam de carne, enquanto atribuía uma fecundidade abundante àquelas
que assim eram devastadas, assegurando a preservação da espécie.
Em resumo, Epimeteu concebe e implementa uma
ordem equilibrada, justa e praticável, na qual cada espécie animal deve ser
capaz de coexistir e até mesmo prosperar junto às outras. Ao concluir seu
trabalho, satisfeito consigo mesmo, ele chama seu irmão. No Olimpo, eles
contemplam a Terra do alto. "Veja", ele diz orgulhosamente, "foi
acertado confiar em mim desta vez. É um trabalho bom e belo, não é?"
Prometeu examina as criações e balança a cabeça, parecendo preocupado.
"Você é incorrigível. Sim, de certa forma, é bom, mas você não percebeu
que esqueceu os humanos? Você deu tudo aos animais, não sobrou nada para eles –
nem carapaça, nem garras, nem asas, nem nadadeiras, nem pelagem, nem qualquer
dom que os preparasse para sobreviver no reino animal que lhes será
hostil." Vemos Epimeteu desanimado, seguido por Prometeu quebrando a
cabeça e se perguntando como corrigir a tolice de seu irmão. É então que
percebemos que ele tem uma ideia genial.
Planejo adquirir o fogo na forja de Hefesto e
as habilidades artísticas no estúdio de Atena, a deusa da inteligência, para
oferecê-los à humanidade. Dessa maneira, eles terão a capacidade de forjar sua
própria existência, confeccionar roupas, uma vez que não possuem pelagem,
erguer moradias, já que não dispõem de cavernas, tocas ou carapaças, cultivar
plantas, criar animais, construir embarcações, veículos, armamentos,
ferramentas, entre outros. Resumindo, por meio do fogo e das artes, terão o
poder de subjugar a criação e tornar-se mestres e proprietários da natureza.
Nesta passagem de Platão, no diálogo de
Protágoras, descreve-se o equívoco de Epimeteu, que, reconhecidamente, não era
muito perspicaz. Epimeteu não percebeu que, ao esbanjar as qualidades entre as
criaturas irracionais, deixou de lado a raça humana, que ficou desprovida de
tais dádivas. Diante do embaraço de Epimeteu, Prometeu chega para remediar a
situação. Observando que os outros animais foram devidamente providos, enquanto
o homem permanece nu, descalço, sem coberturas e desarmado, Prometeu decide
intervir. Ele rouba de Atena o talento criativo das artes e de Efésio, o fogo,
uma vez que sem o fogo seria impossível adquirir ou utilizar esse talento.
Assim, agindo assim, Prometeu presenteia o homem com esses dons.
Visualizamos Prometeu, de maneira furtiva,
atravessando a Forja de Hefesto para subtrair o fogo. Ele incorpora alguns
carvões incandescentes impregnados com erva-doce e, em seguida, dirige-se à
morada de Atena, onde encontramos uma espécie de laboratório repleto de
técnicas. Nesse espaço, armas, ferramentas diversas, rodas de carro,
instrumentos de navegação e até planos de embarcação estão dispostos. Em algum
recanto, a coruja de Atena observa a sala. Prometeu enche uma ampla bolsa com
exemplares desses tesouros e, portando a bolsa e o fogo impregnado de
erva-doce, retorna à Terra para presentear os seres humanos com as maravilhas
recém-roubadas dos deuses.
Por meio desses presentes, os seres humanos
adquirem sabedoria. Subitamente, passam a criar sonhos significativos, a
comunicar-se, a confeccionar vestimentas, a preparar alimentos, a erigir
moradias, veículos, armas, embarcações e ferramentas. Para entender a trama da
narrativa, é essencial perceber como Prometeu comete um duplo equívoco nesta
situação, resultando em uma dupla punição por parte de Zeus, tanto para ele
quanto para os humanos.
Inicialmente, Prometeu age como um infrator ao
adentrar sem permissão na forja compartilhada por Hefesto e Atena para subtrair
fogo do primeiro e as artes da segunda. Assim, já está sujeito a punição por
esse roubo. Contudo, o principal delito de Prometeu é conferir à humanidade,
sem a aprovação de Zeus, um poder inovador, um gênio criativo quase divino.
Esse gesto suscita a preocupação de que, mais cedo ou mais tarde, os humanos
possam se autoproclamar deuses, especialmente considerando sua propensão à hybris,
à desmedida, à arrogância e ao orgulho. Conforme indicado por Protágoras,
graças às qualidades genuinamente divinas oferecidas por Prometeu, os seres
humanos emergem como os únicos seres vivos capazes de criar objetos técnicos,
artificiais, vestimentas, abrigos, artigos alimentares provenientes da terra,
veículos, embarcações, armamentos, ferramentas, entre outros. Isso implica que,
semelhante aos deuses, eles também se tornam verdadeiros criadores.
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Além disso, eles destacam-se como os únicos não
apenas com a habilidade de articular pensamentos para atribuir-lhes
significado, ou seja, os únicos possuidores de linguagem, o que, mais uma vez,
os aproxima notavelmente dos deuses. Também têm a capacidade de moldar suas
vidas, escolhendo livremente entre uma infinidade de destinos diversos.
Inicialmente, partindo de uma condição nada extraordinária, podem
transformar-se em qualquer coisa mais tarde. Diferentemente, por exemplo, das
abelhas, que têm um programa instintivo para produzir mel, ou dos gatos que são
programados para caçar ratos. Os seres humanos não possuem um programa
predeterminado desde o início, o que os torna seres livres, capazes de assumir
inúmeras trajetórias de vida.
Uma vez que esses dons são diretamente
provenientes dos Olimpos, pois Prometeu os concedeu aos humanos, é evidente que
estes serão os únicos seres conscientes da existência dos deuses. Portanto, têm
a capacidade de respeitá-los, erigir altares em sua honra e oferecer
sacrifícios, algo apreciado pelos deuses. No entanto, apesar dessa consciência
divina, os humanos persistem em agir injustamente uns com os outros,
colocando-se constantemente em risco. Ao contrário dos animais, que desde o
início estabelecem um sistema equilibrado e viável de autodestruição, os
humanos enfrentam permanentemente a ameaça da hybris e da desmedida. Essa
espécie, forjada por Prometeu sem o consentimento de Zeus, revela-se
extremamente perigosa e preocupante para o cosmos. Não é difícil compreender
por que Zeus se irrita com Prometeu, considerando detestáveis e imprudentes os
presentes concedidos. Ele contempla punir tanto esse filho de Titã quanto os
humanos para restaurá-los ao seu devido lugar e incentivá-los a evitar a hybris.
Este é o autêntico desafio do mito: assegurar
que, apesar dos presentes concedidos por Prometeu, os mortais não se
transformem em semi-deuses e não coloquem em risco a ordem cósmica, assim como
Tifão e os gigantes fizeram. Consumido pelo ódio em sua fúria descontrolada,
sua arma desembainhada, Zeus, sem limites conhecidos, murmura consigo mesmo:
"Prometeu me compensará". Este imprudente não percebe que, ao
presentear os humanos com fogo e artes, os torna a espécie mais perigosa, a
única, para ser honesto, capaz de ameaçar a recém-estabelecida ordem de maneira
tão dolorosa. Determinado, Cratos e Bia são enviados imediatamente para trazer
Prometeu, encontrando-o em seu palácio e o conduzindo até Zeus com as mãos
amarradas, apresentando uma figura lastimável.
Prometeu, lamentável tolo, não apenas agiu como um ladrão, mas também colocou em risco ao conceder aos humanos armas que podem potencialmente destruir a ordem cósmica que custou tanto para ser estabelecida. Sua punição será tão horrenda quanto seu delito. Cratos e Bia o conduzirão a um rochedo nas colinas calcárias, onde será acorrentado eternamente. Diariamente, uma águia monstruosa, prole de Tifão e Équidna, virá devorar seu fígado. E a cada noite, este se regenerará, garantindo que seu sofrimento seja tão intenso quanto interminável. Juro pelo Estige, o rio dos infernos, intransponível por qualquer ser, inclusive eu, que jamais o libertarei de suas correntes ou de seu rochedo. Que isso fique bem claro.
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