Imprensa, organizações e o movimento abolicionista: uma perspectiva interligada

O Brasil do século XIX destaca o papel crucial da imprensa republicana e os desafios enfrentados pelos jornais políticos.

Cartas Raciais
Cartas Raciais: Revista Piauí- Reprodução UOL

A partir do século XVIII, com o desenvolvimento da ideia de consenso social e sua constante renovação, o estabelecimento de jornais e organizações passou a representar um símbolo de progresso e alinhamento aos princípios iluministas. Assim, na era moderna, a compreensão de um determinado momento histórico, especialmente em termos políticos, requer uma análise da atividade associativa e da mídia.

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Se durante a era iluminista a imprensa e as organizações eram consideradas os meios desejáveis, legítimos e confiáveis para impulsionar a reforma e o progresso da humanidade, as revoluções no final do século XVIII introduziram a participação popular como um elemento crucial para transformar as instituições do antigo regime. A partir desse ponto, uma das divisões entre os reformadores foi a posição em relação à participação popular como um componente indispensável para as mudanças. Apesar da contrarrevolução vigorosa em toda a Europa, as demonstrações públicas com envolvimento popular em busca de transformações sociais, políticas e econômicas foram uma realidade inescapável durante o século XIX. No Brasil, essa dinâmica não foi diferente. A compreensão de sua história política no século XIX, seus debates parlamentares e disputas partidárias requer uma análise conectada à história da imprensa, das associações e das manifestações públicas.

Para aprofundar o aspecto político do movimento abolicionista, os principais personagens são os jornais estabelecidos pelos republicanos abolicionistas entre 1875 e 1904. Essas publicações, em sua maioria, tiveram uma circulação efêmera e estavam vinculadas a um campo de opinião específico em um contexto político particular. Muitos republicanos abolicionistas tentaram manter seus próprios jornais, mas o sucesso foi alcançado por figuras como Ferreira de Menezes e José de Patrocínio, por meio da Gazeta da Tarde e do Cidade do Rio. Em certa medida, esse êxito obscureceu as tentativas infrutíferas de outros, como Jerônimo Simões, Matias Carvalho, Lopes Trovão, Ennes de Souza, Vicente de Souza, Ferro Cardoso, Pardal Mallet, Almeida Pernambuco, Aristides Lobo, Saturnino Cardoso e Luiz Leitão.


Para analisar esses periódicos em diferentes contextos, é essencial situá-los inicialmente dentro do contexto da história da imprensa, considerando seus diversos aspectos sociais, culturais, políticos e econômicos. Além disso, é crucial percebê-los não apenas como meros reflexos de estruturas socioeconômicas, mas como participantes significativos de determinados processos históricos. Ao explorar o catálogo de periódicos da Biblioteca Nacional referente ao Rio de Janeiro no século XIX, conseguimos estabelecer conexões importantes entre a história da imprensa e o ativismo republicano e abolicionista. Vale ressaltar a influência robusta da imprensa do século XIX, mesmo em comparação com os números da segunda metade do século XX, antes da era digital. Aproximadamente 1.260 jornais circularam no Rio de Janeiro entre 1808 e 1900, mas a maioria enfrentou desafios consideráveis para manter-se ativo por mais de um mês.

Frontispício da Biblioteca Nacional no dia de sua inauguração (12 nov. 1910)

Frontispício da Biblioteca Nacional no dia de sua inauguração (12 nov. 1910) 

Indubitavelmente, um dos traços distintivos da imprensa no século XIX era sua natureza nitidamente efêmera. Muitas publicações surgiam com a intenção de intervir no debate público, sem a intenção de persistir, alinhando-se à ideia da imprensa centrada em seu papel político. A história da imprensa nesse período pode ser compreendida pela crescente oposição entre duas abordagens. Uma visão que via o jornal como um agente político crucial na formação da opinião, claramente configurando-se como uma imprensa formativa. Enquanto a outra, buscando atingir um amplo público, se estruturava com base na imparcialidade, destacando seu caráter informativo e não partidário (Charlie 2004).

A dimensão econômica, assim como as considerações técnicas, desempenhou um papel crucial nesse conflito. A imprensa que se autodefinia como formativa e se apresentava como um espaço para avaliação e crítica do poder enfrentava desafios financeiros e estruturais. Ao renunciar aos subsídios oficiais responsáveis pela sustentação da imprensa ligada ao poder central, os formadores de opinião dependiam de recursos como assinaturas, vendas em bancas, anunciantes e sessões a pedido, além do apoio financeiro de indivíduos particulares. A abordagem direta oferecia menos oportunidades para atingir um público amplo em comparação com a alegada imparcialidade política. Em outras palavras, o jornal que comercializava notícias, informações e entretenimento tinha uma probabilidade maior de se tornar uma mercadoria lucrativa do que o jornal partidário.

Num ciclo recorrente, quanto mais extenso o alcance e a circulação, maior o interesse dos anunciantes em espaços publicitários e solicitações. Essa dinâmica é essencial para a sustentabilidade dos periódicos. No entanto, a supremacia da imprensa imparcial e informativa sobre a parcial e política estava condicionada a avanços técnicos tanto na própria imprensa quanto nos setores de transporte e comunicação. No início do século XIX, dada a lentidão estrutural nas comunicações e transportes, era desafiador conceber a imprensa como principal fonte de informações sobre eventos globais. Portanto, para compreender por que muitos jornais catalogados circularam por no máximo um mês, é crucial considerar todos esses elementos e avaliar o impacto desses fatores. Seria necessário examinar o propósito do jornal no momento de sua criação, se voltado para uma intervenção pontual ou com perspectiva a longo prazo. Independentemente disso, é evidente a considerável dificuldade em ultrapassar esse limite.

Dos 1.260 jornais catalogados, 544 (43,17%) tiveram uma existência de apenas um mês. Se somarmos a esse total os 288 jornais que conseguiram persistir por seis meses, observamos que 66,03% dos jornais não conseguiram superar a marca de um semestre. Após esse primeiro semestre, o número diminui consideravelmente a cada ano, especialmente após três anos. Nesse contexto, 141 jornais mantiveram-se por um ano, 129 por dois anos, 34 por três anos, mas apenas nove jornais conseguiram subsistir por cinco anos.

Para estabelecer correlações entre o número de jornais e os contextos políticos, examinamos cada faixa de duração dos periódicos, identificando os anos e décadas com maior quantidade de publicações. Na primeira metade do século XIX, a década de 1830 se destacou com o maior número de periódicos. Esse período de considerável instabilidade, marcado pela abdicação de D. Pedro I e as regências, coincidiu com uma explosão na produção de impressos, expansão de novas formas de interação social e ativismo político focado na formação da opinião pública, carregando consigo significados diversos e muitas vezes antagônicos. Nelson Werneck Sodré, em sua obra "História da Imprensa no Brasil" (1999), já havia atribuído grande importância a esse período, destacando o papel dos pasquins e suas variadas propostas socioeconômicas e políticas.

Nelson Werneck Sodré

Nelson Werneck Sodré. Foto: Reprodução Goodreads

 
Na segunda metade do século XIX, a década de 1880 testemunha uma segunda onda de impressos, abarcando 40,9% dos jornais que circularam por até um mês, uma tendência que se mantém em todas as outras categorias de duração. Similar aos anos 1830, o surgimento abundante de novos periódicos na década de 1880 reflete o dinamismo da vida política, transformando a imprensa em um ponto de convergência entre intelectuais e a população, fora do âmbito parlamentar. A ressurgência dos pasquins no início da década de 1880 é outro elemento que aproxima esses dois períodos. Além disso, ao proporcionar certa autonomia profissional, a imprensa fortalecia o ativismo político independente dos interesses da elite e do grande comércio, ao mesmo tempo que impunha aos seus proprietários e editores a lógica de uma competição extremamente acirrada pela permanência no mercado.

Ao analisar a trajetória de Flávia Magalhães Pinto (2018, p. 147-154), destacou-se a importância pessoal, política e profissional do investimento na imprensa, ao mesmo tempo em que salientou os conflitos envolvidos na busca por reconhecimento em espaços até então inexplorados por seus pais e avós. A busca pela autonomia estava intrinsecamente ligada à competição pelos investimentos, algo inerente à continuidade de qualquer periódico. O Jornal do Commercio, amplamente reconhecido como o principal representante da grande imprensa, do grande comércio e da grande propriedade por todos os atores políticos, revelava claramente o segredo de sua durabilidade. Esse segredo incluía a referência à neutralidade, o apoio a todos os governos, a publicação a pedido, o uso de pseudônimos com preços elevados, a veiculação de anúncios de diversos produtos, além do suporte financeiro proveniente de fontes públicas e privadas.

Como posicionar os jornais abolicionistas e republicanos no desenvolvimento da grande imprensa? Como conciliar suas funções políticas e formativas com as demandas financeiras em um país com uma base reduzida de leitores? Qual seria o alcance desses periódicos em um país predominantemente não letrado? Em última análise, quais seriam as condições necessárias para a continuidade de um jornal exclusivamente dedicado às causas republicana e abolicionista? Antes de adentrar essas questões, surge a indagação se a categorização inicial de "imprensa abolicionista" contribuiu para a compreensão dos conflitos políticos e sociais desse contexto. No caso do abolicionismo no Rio de Janeiro, essa categorização abrange principalmente periódicos liderados por José do Patrocínio, como a Gazeta da Tarde, Cidade do Rio e Gazeta de Notícias, além do Abolicionista, uma publicação mensal da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, uma revista ilustrada por Ângelo Agostini. Entretanto, jornais republicanos que também defendiam a abolição, mas em uma esfera diferente da Gazeta da Tarde ou Cidade do Rio, como Atirador Franco, Jornal da Noite, Gazeta da Noite, Corsário, Grito do Povo, Gazeta Nacional, Carbonário, Combate, Republicano, Socialista, entre outros, não são incluídos nessa categoria ou possuem pouca visibilidade.

Mesmo considerando o contexto do século XIX, o uso da expressão "imprensa abolicionista" deixa lacunas quanto à clareza sobre os jornais incluídos e os critérios utilizados na classificação. Essa ambiguidade é observável tanto nos periódicos que se opunham à escravidão quanto naqueles comprometidos com sua perpetuação. Em certo aspecto, é possível argumentar que a falta de detalhes apenas reflete a ampla compreensão dos leitores da época sobre o tema. Contudo, também parece plausível sugerir que, no início da década de 1880, essa ambiguidade era uma estratégia empregada pelas lideranças envolvidas na formação da frente abolicionista. Uma das primeiras instâncias do uso do termo foi encontrada na Gazeta da Tarde, em novembro de 1880, durante um banquete organizado por Joaquim Nabuco para homenagear o ministro americano Henry Washington Hilliard. No discurso de Joaquim Serra, a imprecisão nos termos "partido" e "imprensa abolicionista" se alinhava perfeitamente ao seu projeto de construir uma frente política contra a escravidão.

Na perspectiva da história da imprensa, preferimos abordar o período destacando a intensa competição entre diferentes concepções sobre a função do periódico na sociedade. Entre essas concepções, uma se autoproclama responsável pela formação política, assumindo abertamente uma postura de imprensa opinativa e até partidária. No entanto, enfrenta desafios estruturais para se manter no mercado devido à sua explícita parcialidade. A outra propõe neutralidade e imparcialidade no âmbito político, definindo-se pela oferta de informações, registros e anúncios. Por fim, há uma concepção que tenta conciliar ambas as abordagens. Apesar dos esforços para definir o papel da imprensa como estritamente formativo, reconhecemos a impossibilidade real de uma imprensa verdadeiramente neutra, especialmente em momentos de crise. Além disso, é crucial considerar as limitações à liberdade de imprensa, especialmente em relação à circulação de jornais declaradamente republicanos.

Sob uma análise jurídica, é factível afirmar que, no Império Brasileiro, a liberdade de expressão, regulada pelo Código Criminal de 16 de dezembro de 1830, não estava sujeita à censura, mas sim a um regime repressivo típico dos estados liberais do século XIX. Em contraste com um sistema preventivo de censura, a regulação estabelecida pelo Código de 1830 não exigia controle prévio para a circulação das obras, aplicando medidas punitivas contra os infratores. Delitos como ataques ao sistema monárquico e provocação contra a pessoa do imperador estavam sujeitos a penas de prisão de 3 a 9 anos. Dado que a propaganda republicana foi construída nos jornais sem que seus redatores, impressores, editores ou vendedores fossem judicialmente punidos, parece justificado afirmar, como alguns monarquistas do século XIX e estudiosos do século XX argumentaram, que no Brasil de Dom Pedro II, existia plena liberdade de imprensa. Nesse contexto, a frequente referência dos republicanos à perseguição às suas publicações deve ser interpretada como um exagero sem fundamento?

Código criminal de 1830

Código Criminal de 1830 - Foto: Facebook


Embora a perseguição judicial contra jornalistas tenha sido rara, mesmo os historiadores que destacam a ampla liberdade de imprensa no segundo reinado apontam a existência de limitações à circulação de jornais, como empastelamentos e ameaças de morte. Em contraposição a essa contradição, os republicanos empenharam-se em argumentar que a suposta liberdade absoluta de expressão no império, baseada na ausência de prisões e processos, era apenas uma fachada para encobrir a aplicação sumária da justiça pela polícia d'El Rei (Atirador Franco, 2 de fevereiro de 1881). Se a repressão não ocorria por meio do sistema judicial, era efetivamente executada por ameaças e empastelamentos apoiados pelas próprias autoridades.

Jornal do século 19
Jornal do século 19. Foto: Facebook

Os historiadores continuam a discordar sobre a relação entre as lutas dos escravizados e o movimento abolicionista, assim como diferem na caracterização desse movimento. Na nossa perspectiva, as batalhas dos escravizados pela liberdade, seja de forma individual ou coletiva, por meio de violência ou outros meios, são intrinsicamente ligadas à própria instituição da escravidão. Seguindo a abordagem de Clóvis Moura (1990), Lana Lage da Gama Lima (1981) e outros, a escravidão é inconcebível sem a presença de violência, instrumentos de tortura, castigos e sofrimentos que nenhum discurso sobre paternalismo, negociação ou acomodação pode negar. Da mesma forma, a prosperidade e a dinâmica da escravidão, que resultaram em áreas de alto desenvolvimento econômico, juntamente com uma densidade populacional totalmente desfavorável à população livre, forçaram a concessão de direitos aos escravizados. Essa concessão de direitos também se tornou um mecanismo fundamental na manutenção das relações escravistas.

Da mesma forma, a flexibilidade na disponibilidade de escravizados conseguiu criar uma adesão abrangente, tanto social quanto geográfica, à instituição escravista, limitando assim as possibilidades de surgimento de discursos antiescravistas, com maior ou menor impacto. A coerção através da violência ou a submissão por meio da concessão de direitos foram elementos cruciais que moldaram as relações escravistas, as quais, por sua vez, não podem ser compreendidas sem considerar as diversas interpretações que os próprios escravizados, provenientes de distintas regiões da África e diversas etnias, atribuíram à liberdade, ao trabalho, à vida, à religião, entre outros aspectos.

A dinâmica geográfica do abolicionismo nos últimos anos da escravidão destaca a natureza predominantemente urbana desse movimento. No entanto, é crucial observar que somente a sua interligação com o meio rural foi capaz de efetivar a abolição imediata e sem indenização em 13 de maio de 1888. Em certa medida, a tensão entre a cidade, que viabilizou o surgimento de associações e jornais abolicionistas, e o campo, associado ao poder dos grandes proprietários de escravizados, constituiu um dos elementos fundamentais do próprio sistema escravista. Este, plenamente integrado ao capitalismo, era inseparável da vida urbana, comercial e financeira. A exploração da mão de obra escrava nas grandes propriedades exportadoras, vinculadas ao crédito, ao progresso técnico-científico, às ferrovias e aos portos, estabelecia uma conexão necessária entre a cidade, com seus jornais, teatros e reuniões, onde circulavam ideias contrárias tanto à escravidão quanto ao próprio capitalismo.

É na atmosfera urbana, com sua variedade de ocupações, associações mutualistas e assistencialistas, tipografias e redações, que o movimento abolicionista se estruturou. Diferentes correntes políticas, com divergências quanto à extensão do diálogo com os escravizados, como Minloco, integraram-se a esse ambiente. Do ponto de vista de uma história política do movimento, identificamos esse aspecto como um dos principais divisores. A propaganda abolicionista deveria ser direcionada aos escravizados ou exclusivamente aos homens livres e à elite política? Deveria permanecer restrita à cultura letrada urbana ou estender-se ao campo e conectar-se à cultura iletrada? Essas e outras questões permaneceram latentes na ampla frente política abolicionista, constantemente ameaçando a unidade. As reformas a serem consideradas como consequências lógicas do fim da escravidão, a abordagem racial, reforma ou revolução – todas essas indagações permearam o movimento. Antes de explorar cada uma dessas questões, é crucial ressaltar que a organização do movimento abolicionista no Rio de Janeiro não pode ser dissociada de um novo ativismo republicano que, pelo menos desde 1875, apostava em associações, imprensa e participação popular para efetuar reformas sociais e políticas. Mondiad.com

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