Anualmente, o líder máximo proferia uma coletiva de mídia, abordando questões econômicas e oferecendo um vislumbre da interação política aos cidadãos chineses. Contudo, essa tradição agora foi encerrada.
Cenas do congresso do ano passado: Xi, à esquerda, com o ex-primeiro-ministro Li Keqiang, ao centro, e o primeiro-ministro Li Qiang.Mark Schiefelbein/Associated Press |
Internacional- Por
mais de três décadas, a coletiva de imprensa anual do primeiro-ministro da
China foi a única oportunidade em que um líder de alto escalão se dirigiu a
perguntas de jornalistas sobre o estado do país. Era o único momento em que o
público podia formar sua própria opinião sobre o segundo oficial mais
importante da China. Era a única chance para alguns chineses sentirem uma leve
sensação de envolvimento político em um país onde as eleições são inexistentes.
No entanto, na segunda-feira, a China anunciou que a tradicional conferência de
imprensa do primeiro-ministro, que marcava o término da legislatura anual do
país, não seria mais realizada. Com essa decisão, uma instituição importante da
era das reformas da China desapareceu. "Bem-vindo à República Popular
Democrática da Coreia", comentou um usuário na plataforma de redes sociais
Weibo, expressando a sensação de que a China está se aproximando cada vez mais
de seu vizinho ditatorial e fechado. O termo "coletiva de imprensa"
foi censurado no Weibo, e havia pouquíssimos comentários na noite de
segunda-feira, horário de Pequim.
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Apesar
de ser um evento cada vez mais planejado, a coletiva de imprensa do
primeiro-ministro no Congresso Nacional do Povo era aguardada pelo público
chinês e pela elite política e empresarial global em busca de indícios de
mudanças na política econômica e, por vezes, de intrigas políticas de alto
nível que poderiam estar ocorrendo nos bastidores.
"Por
mais que possa ter sido encenado, era uma oportunidade para observar como o
governo chinês funciona e como se comunica com o povo chinês e o mundo em
geral", comentou Charles Hutzler, um ex-colega meu que cobriu 24 dessas
sessões de imprensa desde 1988 como jornalista da Voice of America, The
Associated Press e The Wall Street Journal.
A
decisão de cancelar a coletiva de imprensa reflete as difíceis condições
econômicas enfrentadas pela China e a crescente tendência da liderança em
manter o país envolto em mistério. E a conclusão é clara: Xi Jinping, o
principal líder da China, é o único responsável por uma nação com 1,4 bilhão de
habitantes.
O
encerramento da coletiva de imprensa também eliminou os últimos resquícios da
era das reformas.
Durante
as décadas de 1990 e 2000, a China apresentava dois grandes eventos televisivos
anuais: a gala televisiva do Ano Novo Lunar e a coletiva de imprensa anual com
o primeiro-ministro. Esses eventos eram tão importantes quanto o Super Bowl e o
Oscar nos Estados Unidos, especialmente porque a China tinha poucos canais de
TV e a internet estava em seus estágios iniciais.
Um
dos momentos políticos mais memoráveis na televisão para muitos chineses
ocorreu em novembro de 1987. O então primeiro-ministro, Zhao Ziyang,
misturou-se com correspondentes estrangeiros em uma recepção no final do
Congresso do Partido Comunista. De maneira descontraída e sorridente, ele
respondeu às perguntas: Houve uma luta pelo poder dentro do partido entre os
reformistas e os conservadores? Havia liberdade na China? Onde conseguiu seu
elegante terno de corte duplo? O Sr. Zhao, que foi eleito secretário-geral do
partido no congresso, chegou até mesmo a insinuar: “Pessoalmente, acredito que
sou mais adequado para o cargo de primeiro-ministro. Mas todos queriam que eu
fosse secretário-geral.”
Uma
declaração tão franca de um funcionário chinês seria inimaginável nos dias de
hoje.
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Mais tarde, Zhao foi destituído por se opor à violenta
repressão dos manifestantes na Praça Tiananmen em 1989. Ele faleceu enquanto
estava em prisão domiciliar. A transcrição e o vídeo da recepção mostram que
ele evitou responder às perguntas, exceto àquela sobre seu terno. (O terno foi
feito por uma alfaiataria em Pequim chamada Hongdu, ou Capital Vermelha.)
A coletiva de imprensa com o primeiro-ministro foi
estabelecida em 1993, mas só se tornou um evento televisivo regular quando Zhu
Rongji, um primeiro-ministro eloquente e bem-humorado, subiu ao palco em 1998.
Expressando sua determinação em ser um líder exemplar, ele afirmou: “Não
importa se há um campo minado ou um abismo sem fundo à frente, seguirei em
frente sem hesitação”.
Este evento se tornou tão popular que duas pessoas
envolvidas nele se tornaram famosas nacionalmente: uma jornalista de uma
estação de televisão de Hong Kong que fez uma pergunta e uma funcionária do
Ministério das Relações Exteriores que interpretou para ele em inglês.
O sucessor de Zhu, Wen Jiabao, não atraiu muita atenção em
suas coletivas de imprensa até a última, em 2012. Na ocasião, ele discutiu
sobre a necessidade de reformas políticas na China – o último líder chinês de
alto escalão a mencionar isso – e sinalizou a queda de Bo Xilai, um rival
político de Xi Jinping.
Durante uma década como primeiro-ministro de Xi Jinping, Li
Keqiang foi frequentemente marginalizado por seu líder dominante. No entanto,
em 2020, ele fez uma declaração notável sobre transparência, revelando que
cerca de 600 milhões de chineses, ou 43% da população, viviam com uma renda
mensal de aproximadamente US$ 140. Esses comentários contradisseram a narrativa
de Xi sobre o sucesso do país no combate à pobreza. Após a morte repentina de
Li em outubro passado, muitos chineses foram à internet para expressar gratidão
por ele ter falado a verdade.
Em grande parte, os primeiros-ministros utilizavam as
conferências de imprensa para responder a perguntas de meios de comunicação
estrangeiros e discutir políticas econômicas e externas. Segundo um artigo de
2013 publicado em uma mídia apoiada pelo Estado, nas primeiras conferências de
imprensa de Zhu, Wen e Li, cada um deles respondeu a quase metade das perguntas
dos meios de comunicação estrangeiros.
Originalmente, as conferências de imprensa do
primeiro-ministro, com cerca de 700 jornalistas presentes todos os anos,
visavam proporcionar oportunidades de entrevistas para meios de comunicação
estrangeiros, ajudando-os a compreender melhor a China, conforme afirma o
artigo.
Sob a liderança de Xi Jinping, o governo chinês tem
expulsado e assediado jornalistas estrangeiros, invadido escritórios de
empresas multinacionais e entrado em disputas com importantes parceiros
comerciais. O fim das conferências de imprensa tornará a China mais isolada e
menos transparente para o mundo exterior, o que não é um bom sinal para a
economia.
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Uma possível explicação para o cancelamento é que a China
está enfrentando os desafios econômicos mais graves das últimas décadas. No
entanto, o país já superou períodos difíceis no passado, como a crise
financeira asiática no final dos anos 90 e a crise financeira global em 2008.
Os primeiros-ministros não tiveram dificuldade em comunicar as políticas do
país ao público e ao mundo. A questão é o quanto a China, sob a liderança de Xi
Jinping, valoriza a comunicação aberta, considerando que a censura na mídia e
na internet atingiu seu auge nas últimas décadas.
Muitos observadores da China especularam que o fim da
conferência de imprensa poderia ser uma tentativa de autopreservação por parte
do atual primeiro-ministro, Li Keqiang. Li foi chefe de gabinete de Xi Jinping
na província oriental de Zhejiang na década de 2000 e deve sua posição ao
presidente.
Desde que assumiu o cargo em março passado, Li Keqiang
minimizou sua estatura e influência. Ele viajou em voos fretados em vez de usar
o equivalente ao Força Aérea Um, ao qual tem direito, tornando Xi Jinping o
único a desfrutar desse status. Ele também reduziu a frequência das reuniões do
gabinete chinês, presididas pelo primeiro-ministro, de semanais para algumas
vezes por mês. Seus retratos não aparecem no site do gabinete. Nem estavam nos
principais portais de notícias na terça-feira, quando ele entregou o relatório
de trabalho do governo, um rito anual para o primeiro-ministro. Como sempre, as
manchetes e os retratos de Xi Jinping dominaram esses sites.
O cancelamento de sua coletiva de imprensa, segundo um
comentarista, provavelmente não se deve à falta de eloquência de Li Keqiang.
"Provavelmente foi porque Li Keqiang sentiu que se tornaria o foco da
mídia na coletiva de imprensa, ofuscando o brilho do Secretário-Geral",
escreveu o comentarista, referindo-se a Xi Jinping. "Ele espera permanecer
para sempre na sombra do secretário-geral."
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